Fé e resistência social
A história de Irmã Dulce, narrada pela jornalista Mariana Godoy, conta a infância da primeira santa brasileira, suas lutas com figuras importantes da história política até sua lamentada morte, em 1992
Além de pai espiritual,
frei Hildebrando seria um importante parceiro no aprimoramento da classe operária na Bahia. A Doutrina Social da Igreja vinha se consolidando à época, sob a inspiração da encíclica, do papa Leão XIII; e, diante dos novos problemas sociais surgidos no começo do século XX, era impossível ignorar o convite do Evangelho à ação social – uma ação em favor daqueles que cada vez mais se viam indefesos [...] No Brasil, as Obras Sociais Franciscanas acompanharam o progresso da Doutrina Social, tentando amenizar a pobreza por meio do assistencialismo e também reorganizar as condições de trabalho, com a criação dos Círculos dos Trabalhadores. Frei Hildebrando Kuthaup foi um dos pioneiros na organização dos movimentos operários no Brasil, e vinha realizando um bom trabalho na Bahia, junto com a Congregação Mariana.
Irmã Dulce, por sua vez, em cujo coração cabia todos, além dos seus trabalhos sociais acolhendo os mais necessitados, também se reunia com os operários na hora do almoço, a fim de catequizálos. Era uma oportunidade para unir forças, para tentar modificar um pouco as estruturas sociais e evitar que a miséria se tornasse cada vez maior. Surgiram, assim, os Círculos Operários da Bahia. Frei Hildebrando era o cérebro, o organizador; Irmã Dulce, o coração [...]
Eles tinham uma profunda união espiritual, e decidiram organizar a primeira reunião dos trabalhadores. Sem muito sucesso, porém: na verdade, foi um fiasco. Apareceram somente quatro homens e seis mulheres. Muita gente aconselhou Irmã Dulce a desistir – ela já tinha, afinal, muito trabalho resgatando os pobres e doentes nas ruas. Desistir, porém, era um verbo inexistente para quem confiava em Deus. Dulce tivera a experiência de começar com alguns pobres na porta da sua casa; frei Hildebrando, a de ter fundado uma rádio, uma rede de cinemas, um mosteiro, uma casa de retiro e tantas outras obras. Com toda essa bagagem, quem desanimaria?
A insistência valeu a pena. Na segunda reunião, surgiram mais de 200 pessoas. A partir dali, freira e frade se dedicaram à União Operária São Francisco, fundada em 31 de outubro de 1936. Tratava-se do primeiro movimento operário cristão no Brasil. Os dois conseguiram uma sede e instalaram um ambulatório e uma farmácia para atender os trabalhadores. O movimento foi crescendo. Menos de um ano depois, a União Operária São Francisco foi transformada em Círculo Operário da Bahia. Além da assistência médica e farmacêutica que já recebiam, os sócios tinham à disposição atividades culturais e recreativas, bem como proteção social mediante a defesa de direitos básicos, uma vez que a legislação trabalhista ainda era muito precária. Um dos primeiros sindicatos de trabalhadores do Brasil, havia nele incentivo para a criação de cooperativas e ajuda mútua através de um fundo de auxílio e de empréstimos a quem não tinha acesso aos bancos [...]
A união de frei Hildebrando e Irmã Dulce já havia sido realizada na fé, por meio da direção espiritual. Agora, ela se consolidava também no trabalho social, que ambos tinham ciência de ser conduzido pela vontade de Deus. “A luta pode ser cada vez maior; porém, tudo é possível e se torna melhor quando se confia em Deus.” A frase é de Irmã Dulce, mas poderia ser compartilhada com seu diretor.
E ambos sabiam que melhorar as condições materiais era o primeiro passo para reaproximar as pessoas da fé. A terrível miséria, muitas vezes, leva as pessoas a um estado de desespero e, sem esperança, o abandono religioso se aproxima. “Queremos ir ao encontro dessa pobre gente, levando-lhe conforto material e espiritual”, dizia
Hildebrando. E eles foram.”
“Não existe estado mais sublime do que o da pessoa que consagra a sua vida a Deus”