Ana Maria

O poder do silêncio

Na obra, a fundadora da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil, Monja Coen, compartilh­a detalhes sobre sua vida e trajetória

- Karla Precioso

Não é exatamente uma biografia

ou uma autobiogra­fia. Nunca houve uma. Houve tentativas, romances baseados em trechos de minha vida e só. Aqui deixo retalhos da memória.

Talvez quem tenha convivido comigo, em alguns dos episódios aqui relatados, venha a dizer que estou enganada, que as coisas foram diferentes do que eu me lembro. Pode ser. Não confirmo, afirmo nem reafirmo. Fragmentos que o silenciar da mente deixou vir à superfície a dançar com imagens, música, sons, palavras.

Aprendi muito com o silêncio. Ensinou-me a ouvir dentro e fora de mim mesma. Ensina-me a quietude viva e excitante de jamais repetir um instante. Silenciar a mente incessante e luminosa não é calar apenas. É encontrar um estado de tranquilid­ade onde som e silêncio se mesclam.

Pausas e notas musicais. Como poderia uma existir sem a outra? Somos o pluriverso em movimento. Tudo que existe é o cossurgir interdepen­dente e simultâneo. Nada tem uma autoexistê­ncia individual, substancia­l e independen­te. Cada ser é o todo manifesto e não parte do todo. Surge a responsabi­lidade, a ternura, o cuidado, a compaixão e, assim espero, a sabedoria perfeita. Nada falta e nada excede.

Muitas pessoas querem saber da minha vida pessoal, antes, durante e depois. O depois ainda não sei. O antes mal me lembro e o durante é o agora. Ao mencionar o instante, ele se vai embora. Fui lembrando algumas lembranças.

Convido você a silenciar. Convido você a ler e quiçá apreciar. Em Buda me refugio. No Darma me refugio. Na Sanga me refugio.

Era manhã de um dia qualquer e eu havia saído para caminhar e passear com meu dogue alemão, Joshua, por Beachwood Drive, onde eu morava. Beachwood Drive é a rua que leva às montanhas onde as grandes letras brancas de

Hollywood estão afixadas. A madeira de praia (beach wood) conduz para a madeira sagrada (holly wood). Joshua era um cão treinado, cinza-azulado, que podia andar sem guia. Um grande companheir­o. Assim caminhávam­os, quando avistamos Walter Sheetz, que descia a rua com sua bengala. A figura de Walter era singela. Tinha as costas curvadas, poucos fios de cabelos brancos nas laterais da cabeça e pintava as sobrancelh­as de marrom. Hoovering eyes era como ele se referia aos seus olhos azuis. Perscrutan­do a realidade. Olhando em profundida­de.

Sempre nos cumpriment­ávamos e trocávamos algumas palavras. Nesse dia ele me presenteou com um livro. “Este é o best-seller atual. Você vai apreciar.” Walter continuou alegre a descer a rua pela qual eu subia. O nome do livro era Alpha Brain Waves – Ondas Mentais Alfa. Voltando do passeio matinal – ainda não eram 7h da manhã, dei de comer a Joshua e levei o livro comigo ao Banco do Brasil, no centro de Los Angeles, onde eu trabalhava como recepcioni­sta e secretária. Trânsito de para-choque a para-choque (expressão comum nos Estados Unidos: bumper to bumper). Os carros ainda eram grandes e talvez houvesse uns 5 centímetro­s entre o para-choque da traseira de um carro e o para-choque da dianteira do carro logo atrás. Mulheres se maquiavam enquanto aguardavam o trânsito. Homens se barbeavam. Era também o momento de tomar café com donuts e ouvir as notícias no rádio. Parecia que ninguém se apressava na Costa Oeste dos Estados Unidos. Seguíamos tranquilos nessa procissão até os estacionam­entos e nossos locais de trabalho.

Eu tinha pouco mais de 30 anos, pesava 47 quilos e malhava três horas por dia, todos os dias da semana, em aulas de balé clássico, junto a atores, atrizes e bailarinos profission­ais. Em casa tinha uma barra de balé, e nas horas vagas me exercitava...

“Somos o pluriverso em movimento. Tudo que existe é o cossurgir interdepen­dente e simultâneo. Nada tem uma autoexistê­ncia individual, substancia­l e independen­te”

 ??  ?? O Que Aprendi com o Silêncio, de Monja Coen Editora: Planeta
Preço: R$ 44,90
O Que Aprendi com o Silêncio, de Monja Coen Editora: Planeta Preço: R$ 44,90

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