Ana Maria

Propósitos do amor

Misteriosa, filosófica e intimista, a obra de estreia de Laerte de Paula é um convite à imersão nos propósitos da paixão e do recomeço. O autor escreve sobre a impossibil­idade do encontro amoroso pleno

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Como ouvir o desejo e ao mesmo tempo fazê-lo passar pelo ponto que, no outro, é surdo a ele? Onde cobrir os olhos? Onde esquecer? De quais apagamento­s depende nossa intumescên­cia? Onde ceder de modo a salvar um desejo? É certo que este cálculo nos escapa. E talvez, somente por isso, ele se torne possível. É uma forma de narrar uma certa disrupção desse desejo: se escuto o outro, perco meu corpo. Se escuto meu corpo, perco-me do outro. Uma comunhão pode ser apenas o encontro de dois pontos-cegos. Para mim, o enlace entre a fantasia e o outro é sempre da ordem do milagre. E não há milagre que não derive da mutilação de algum ponto íntimo. Estas questões ainda fazem impasse para muitas mulheres. É algo vivido mais em carne viva nelas que nos homens. Enquanto umas recorrem a qualquer nome coletivo como um alicerce estruturan­te, outras só conseguem afirmar-se aí nesta falência, neste ambíguo protesto. Sofrem deste trânsito mal-dito, insuficien­temente dito, impossível de ser todo dito. O feminino é tecido nesta soleira poética: como habitar lá e cá? Pois são justamente as mulheres (e os poetas) que cumprem com muito mais coragem esta disjunção entre o sentido e o que o sentido não alcança. Hesitam diante da soleira do consenso. Sabem se dividir com mais dignidade. Por ocasião de sua relação amorosa clandestin­a e epistolar com a professora norte-americana de literatura Katherine Whitmore, o poeta espanhol Pedro Salinas compôs duas de suas principais obras: “A voz a ti devida” e “Razão de amor”. Tenho ambos os livros. “Por detrás de ti te busco No en tu espejo, no en tu letra Ni en tu alma Detrás, más allá

También detrás, más atrás de mi te busco. No eres lo que yo siento de ti.

No eres lo que me está palpitando con sangre mía en las venas, sin ser yo Detrás, más allá te busco”

Salinas tem absoluta razão: todo poeta, todo amante, deve sua voz ao outro. A um certo outro. Aquele que causa nossa voz é aquele que, ao desaparece­r, nos revela algo. Este vazio revelado pertence a nós. Jacques Roubaud: “Nomear-te é fazer brilhar a presença de um ser anterior ao desapareci­mento”. M. me amou em três partes: me amou como corpo, me amou como distância, me amou como segredo. Como responder a este amor? Não pude evitar virar isto que M. amou.

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Através desse amor singular de M., chego a poder ler algo de meu próprio escrito. Meus autores mais caros navegam nas águas dos limites da palavra: Blanchot, Quignard, Duras, Clarice, Bataille, Llansol. Todos estes, fascinados pelo traumático passado na língua. Apaixonada­mente cativos de cenas petrifican­tes. Dedicados a reafirmar uma fidelidade insensata às ruínas insimboliz­áveis que insistem em eclodir no decorrer da vida. Buscando febrilment­e achar em vão uma palavra ou um silêncio que finalmente faça borda neste oco. Este livro quer se banhar nesse silêncio. Esse livro quer se tornar esta mulher. Esta chama em nada difere do que Safo já havia declarado há 26 séculos: “Diante da sua visão, fico sem palavras, minha língua se parte, a febre me queima, meus olhos se borram, meus ouvidos zumbem, transpiro, estremeço”. Agamben: “um texto não tem outra luz a não ser aquela — opaca — que irradia do testemunho de uma ausência”.

M. é a homenagem a um trauma na minha língua...

“O feminino é tecido nesta soleira poética: como habitar lá e cá? Pois são justamente

as mulheres que cumprem com muito mais coragem esta disjunção entre o sentido e o que o sentido não alcança”

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O Vento, A Chama Editora: 106 Preço: R$ 35.

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