Aventuras na Historia

“Chi cerca trova”

PINTOR, ESCULTOR, ARQUITETO, INVENTOR... A OBRA DE LEONARDO DA VINCI QUE CONHECEMOS HOJE, 500 ANOS APÓS SUA MORTE, REVELA UM ARTISTA COMPLETO. MAS NÃO CONTA MUITO SOBRE SUA VIDA. ESTUDIOSOS SUSPEITAM QUE ELE SERIA GAY, HEREGE E ATÉ UM ESPIÃO. TIRE SUAS

- POR CARLO CAUTI

É essa a misteriosa frase – “quem procura acha” – que aparece em um estandarte verde de A Batalha de Marciano, do pintor Giorgio Vasari. Um afresco na parede oriental do Salão dos Quinhentos, no Palácio Velho, em Florença, feito para homenagear a vitória militar de Cosme I. Segundo alguns historiado­res, a mensagem deixada na obra por Vasari, que também foi biógrafo e admirador de Leonardo da Vinci, refere-se a um verso da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Segundo outros, tem um sentido mais enigmático: seria uma referência à Batalha de Anghiari, obra inacabada que Leonardo começou a pintar em 1505 naquela mesma parede, mas que se perdeu ao longo dos séculos. Recentemen­te, usando técnicas modernas e raios X, pesquisado­res encontrara­m atrás da pintura de Vasari indícios de pigmentos compatívei­s com as cores utilizadas por Da Vinci. Ou seja: Batalha de Anghiari poderia estar realmente ali embaixo.

Esse episódio é apenas uma amostra de como estudar e desvendar a vida de Leonardo da Vinci sempre foi uma caça ao tesouro, cheia de mistérios. O gênio toscano morreu há 500 anos, em 1519, deixando para a História obras de arte magníficas, intuições brilhantes e uma montanha caótica de notas, rabiscos e desenhos. Mas também muitos pontos obscuros.

Pintor, cientista, naturalist­a, engenheiro, arquiteto, mecânico, cenógrafo, anatomista, músico, escritor, empresário, entre outras tantas atividades, Leonardo era um talento universal, e foi provavelme­nte o mais completo polímata (indivíduo que domina várias ciências) da História. Durante sua vida, nunca

houve fronteira entre arte e ciência. Ao transitar livremente entre uma e outra como ninguém jamais fez, Da Vinci encarnou plenamente o espírito da sua época, a Renascença (caracteriz­ada pela valorizaçã­o do homem e da natureza).

Foi um homem eclético, no limite da esquizofre­nia. Com ele, tudo acontecia junto e misturado. Enquanto pintava uma cena religiosa por encomenda da Igreja, elaborava pontes giratórias e esquarteja­va cadáveres no meio da noite para estudar anatomia. Ao mesmo tempo em que projetava uma máquina voadora, reformava um castelo, organizava festas ou cozinhava para os patrões.

Esse comportame­nto errático, típico de quem tenta abraçar o mundo, teve um preço alto. Pouquíssim­as das suas ideias saíram do papel. Mas isso não rouba de Leonardo da Vinci nenhum dos adjetivos atribuídos a ele: genial, visionário, perfeccion­ista, obcecado, compulsivo. A maior expressão do homem universal almejado pelo Renascimen­to. E, justamente por ser curioso até não poder mais, escrevia qualquer coisa que lhe passasse pela cabeça, menos o que fazia referência à sua vida particular. Autobiogra­fia nunca foi um desafio que lhe interessas­se. Por isso, conhecemos ainda pouco do homem por trás das obras.

FILHO ILEGÍTIMO

O que sabemos de fato começa com seu avô. Quem informou sobre o nascimento de Leonardo foi o pai de seu pai, de nome Antônio, que escreveu no dia 15 de abril de 1452, em Vinci, um pequeno vilarejo toscano perto de Florença: “Nasceu um neto meu, filho de Ser Piero (…). Seu nome foi ‘Lionardo’”. O pequeno era filho ilegítimo de Piero, um tabelião mulherengo, com uma pessoa misteriosa chamada Caterina. Dela não se sabe, ao certo, o sobrenome nem a origem. De acordo com alguns historiado­res, poderia ser uma escrava do Oriente Médio ou uma camponesa órfã. O certo é que a mãe não tinha condição de criar a criança e que o pai não perdeu tempo para se casar com outra mulher.

O bebê Da Vinci, então, acabou ficando com o avô paterno em seu sítio de Anchiano até completar 5 anos, quando foi morar com o pai, em Florença. Sendo filho ilegítimo, pelas leis da época, Leonardo não podia seguir a carreira de tabelião de Piero e tampouco ter uma educação formal. Não à toa, sempre se descreveu como um omo sanza lettere (um homem iletrado). Chamou-se assim até mesmo depois de se tornar um dos artistas mais admirados de seu tempo.

“O fato de ter sido filho ilegítimo foi, no fim, uma grande sorte e permitiu que Leonardo se tornasse Leonardo. Se ele tivesse sido o primeiro filho legítimo de Piero, provavelme­nte o mundo não teria tido um dos maiores gênios da humanidade, mas apenas mais um tabelião florentino, já que na época esses cargos passavam de pai para filho”, explica Marco Cianchi, professor da Academia da Galeria de Florença e um dos maiores estudiosos de Leonardo da Vinci do mundo. “Sem educação formal, Leonardo não ficou travado nas categorias mentais de sua época, podendo experiment­ar e ousar sem preconceit­os ou limites intelectua­is impostos”, completa.

Se, de um lado, o pai de Da Vinci nunca o reconheceu formalment­e, do outro teve o mérito de intuir os excepciona­is dotes artísticos do filho, que apareceram desde cedo. Foi graças aos seus contatos em Florença que o filho entrou, em 1469, no ateliê de Andrea del Verrocchio, um dos mais renomados estúdios de arte da cidade italiana. Por lá, também foram aprendizes artistas do nível de Sandro Botticelli, Perugino e Ghirlandai­o. “Os ateliês dos artistas italianos eram lugares onde se aprendia não apenas a pintar, desenhar ou esculpir. Eram verdadeiro­s laboratóri­os de artes e ciências”, conta o professor Alessandro Vezzosi, fundador do Museu Ideale Leonardo da Vinci. Segundo ele, os alunos também estudavam matemática, geometria, engenharia mecânica e até química. “Tudo o que podia ser útil para criar uma obra de arte”, diz.

Esse período, sem dúvida, foi decisivo na formação de Leonardo. Mas é importante lembrar também que ele viveu na Alta Renascença, que vai da segunda metade do século 15 até as primeiras décadas do século 16, quando a arte floresceu, a ciência avançou e a vida das pessoas, em geral, melhorou, graças ao aumento da produtivid­ade e dos comércios. Foi naquela época, por exemplo, que o inventor gráfico Johannes Gutemberg imprimiu o primeiro livro da História; que Piero della Francesca codificou a perspectiv­a linear na pintura, mudando para sempre a forma de produzir arte; que Francesco de Giorgio publicou o primeiro tratado de mecânica; que Cristóvão Colom

bo descobriu as Américas; e que Nicolau Copérnico revolucion­ou a visão do Universo.

Com essa perspectiv­a, fica mais fácil entender como esse fermento intelectua­l, especialme­nte na Itália, influencio­u a formação do jovem Leonardo.

“Ele era extremamen­te curioso e obcecado da vontade de saber. Lia de tudo, cercava-se de livros, documentos, desenhos, e dizia que seu método era observar a natureza e aprender com ela. Também vivia perguntand­o tudo para todos, especialme­nte sobre o funcioname­nto das máquinas e sobre a natureza e o mundo, anotando rigorosame­nte as respostas”, explica Romualdo Mazzocco, professor e autor do livro Leonardo da Vinci, il Genio Italico (sem edição no Brasil). O estudioso destaca o perfeccion­ismo do artista: “Era quase doentio, muito parecido com Steve Jobs nos dias de hoje”.

No ateliê de Verrocchio, Leonardo se tornou rapidament­e o aprendiz predileto. E não apenas por sua inteligênc­ia, habilidade artística e manual. De acordo com escritos da época, a predileção também tinha a ver com sua beleza física. Da Vinci foi um jovem forte, alto e atraente. “Era uma pessoa bonita, proporcion­al, cheia de graça e de aspecto bonito”, descrevia uma crônica de Anonimo Gaddiano. Na época, em Florença, a homossexua­lidade era condenada em tese, mas muito praticada. E, entre as páginas dos Códigos de Leonardo, insuspeitá­veis desenhos escabrosos parecem fazer referência a relações entre homens. Em 1508, por exemplo, o gênio italiano escreveu que o órgão sexual masculino “deveria ser ornado e mostrado com solenidade, como ‘ministro’ da espécie humana”.

Diante de registros assim, muitos chegaram à conclusão de que o artista era homossexua­l. Há quem diga, aliás, que seus dois discípulos prediletos, Gian Giacomo Caprotti (conhecido como Salaì) e Francesco Melzi, foram seus amantes. Provas sobre isso não foram encontrada­s até hoje, mas em 1476 foi registrada em Florença uma acusação formal de sodomia contra o jovem de 17 anos Jacopo Saltarelli – Leonardo foi processado junto com outros três alunos do ateliê de Verrocchio. A lei, nesse caso, era duríssima: castração e amputação de um pé ou de uma mão para os sodomitas. Por sorte do artista, entre os envolvidos estava Leonardo Tornabuoni, herdeiro de uma poderosa família que tinha parentesco com os senhores de Florença, os Médici. Assim, a denúncia foi considerad­a “anônima” e arquivada cum conditione ut retumburen­tur (na condição de que os fatos não ocorram novamente).

E foi justamente naquele momento que aconteceu o primeiro “apagão” na história de Leonardo da Vinci. Por quatro anos, ele parou

de pintar, desenhar ou esculpir. Nos documentos da época, ele simplesmen­te desaparece. Desamor pela arte? Novos interesses científico­s? Ou novas paixões terrenas? Mais mistérios na vida do gênio.

OBRAS INACABADAS

O que está comprovado na carreira artística de Da Vinci é certa descontinu­idade. “Várias de suas obras ficaram inacabadas ou foram recusadas pelos clientes, tornando-o famoso por completar poucos trabalhos que começou”, afirma Cianchi. Por falta de documentos, ao longo dos séculos, a literatura transformo­u esses estranhos “fracassos” em uma sina que teria acompanhad­o o pintor no decorrer da sua vida: a suposta “maldição Da Vinci”. Esse “azar” provavelme­nte estava mais relacionad­o com o fato de o artista ser inovador demais para o seu tempo. “Leonardo pensava, idealizava, desenhava e criava coisas muito além do seu tempo. Teve intuições incríveis para um homem nascido no século 15, como o escafandro ou o paraquedas, obras que foram compreendi­das, de fato, somente no século 20. É óbvio que um gênio tão além do seu tempo teria encontrado dificuldad­es para ser entendido por seus contemporâ­neos”, diz Vezzosi.

A boa notícia é que na Florença de Lourenço, o Magnífico, esses dotes não passaram despercebi­dos. Esse soberano da cidade, da família dos Médici, era extremamen­te culto, um humanista que amava se cercar de artistas, pintores e intelectua­is. Entre eles, estava Verrocchio, que introduziu Leonardo na corte. E foi graças a isso que, por volta de 1479, sua carreira deu uma grande virada. Da Vinci se tornou consultor militar e de engenharia de Lourenço, que gostava cada vez mais dele. Um rabisco da época mostra essa ligação: Leonardo desenhou em seu caderno o cadáver enforcado de um dos responsáve­is pela Conspiraçã­o dos Pazzi, Bernardo di Bandino Baroncelli, que havia matado o irmão de Lourenço. “Além de misturar arte e ciência para criar obras-primas, Leonardo desenvolvi­a técnicas de pintura revolucion­árias, como

as chamadas sfumato ou chiaroscur­o”, o professor Mazzocco.

Em 1482, Leonardo tinha conquistad­o tanta confiança dos Médici que foi enviado para Milão como “embaixador cultural” de Florença. A cidade italiana naquele momento histórico era a capital do mundo não somente por sua potência econômica e política mas também porque era o maior centro de artes e cultura do planeta. Por isso, os Médici enviavam artistas florentino­s em missões diplomátic­as às cortes de toda a Europa para realizar obras de arte in loco.

Certa vez, Leonardo teve de levar para o Duque de Milão, Ludovico, o Mouro, uma homenagem: uma lira inteiramen­te de prata esculpida por ele mesmo com a forma de uma cabeça de cavalo. Um objeto, aliás, que só o próprio Leonardo sabia tocar. Grande músico, Da Vinci ficou em primeiro lugar em uma competição musical, ganhando de todos os milaneses e conquistan­do de uma vez a simpatia do duque.

Em Milão, Leonardo percebeu uma alta produtivid­ade e abertura mental para as inovações tecnológic­as e científica­s que não existia em Florença – ainda muito ligada às artes clássicas e ao neoplatoni­smo. Assim, entendeu que naquela cidade do norte da Itália havia uma oportunida­de profission­al. Sem perder tempo, apresentou para o duque uma “carta de emprego”, uma espécie de currículo da época, oferecendo-se para permanecer em Milão a serviço da corte dos Sforza. No documento, Leonardo descreveu suas habilidade­s como engenheiro, principalm­ente de estruturas militares e obras hidráulica­s, além de arquiteto, mecânico, músico, poeta e figurinist­a, deixando por último sua aptidão como pintor e escultor – uma ironia em se tratando daquele que se tornaria o autor da pintura mais famosa do mundo, a Mona Lisa.

Ludovico o contratou. Não apenas porque precisava de um homem com tantas habilidade­s para ajudá-lo em suas contínuas guerras mas também porque estava interessad­o na produção de uma enorme estátua equestre

explica

em bronze de Francesco Sforza, seu pai, que Leonardo prometeu fundir. A estátua, porém, nunca saiu do papel, pois todo o bronze disponível era destinado à produção dos canhões. De todo modo, o artista ficou em Milão por 20 anos, projetando sistemas de irrigação, pintando retratos, desenhando máquinas militares, estudando, mas, principalm­ente, preparando cenografia para as festas na corte dos Sforza. Isso mostra, mais uma vez, a versatilid­ade do gênio, que passava da criação de um protótipo de tanque de guerra à do salão de festas do palácio de Milão, e até à da cozinha, naturalmen­te.

Só que o artista se sentia explorado pelos Sforza. Em 1485, escreveu uma carta reclamando formalment­e com o duque por ter recebido apenas 50 ducados como salário. Muito pouco para sustentar “seis bocas”: a sua, de três ajudantes do ateliê, de um funcionári­o e de uma empregada chamada Caterina.

Segundo alguns estudiosos, essa Caterina poderia ser sua misteriosa mãe, que teria ido morar com ele em Milão, já que o filho parecia ter alcançado uma vida boa – não que Leonardo tenha deixado qualquer texto que possa confirmar essa identidade. Entre os ajudantes, estava o inseparáve­l Salaì, que o acompanhou por 24 anos em suas viagens.

A ÚLTIMA CEIA: LEONARDO HEREGE?

Foi em Milão que Leonardo pintou uma das suas obras mais famosas, A Última Ceia, um afresco no convento dominicano de Santa Maria delle Grazie que revela bem o caráter do artista: uma excessiva vontade de experiment­ar e certa falta de compromiss­o com os clientes. Da Vinci trabalhou nessa obra entre 1495 e 1498, mas não seguiu as regras artísticas da época, escolhendo pintar em cima de uma argamassa seca, ao invés de úmida, como de costume. O problema é que a umidade da parede compromete­u a obra e a imagem começou a se deteriorar rapidament­e. Além disso, os frades foram até o duque reclamar que o artista “nunca aparecia por lá para trabalhar”. “Ele era assim: procrastin­ava tudo para se

guir seus próprios interesses. A questão é que essa não era a melhor forma de conquistar clientes”, afirma o professor Mazzocco.

E, se A Última Ceia acabou estragando, pelo menos a fama da obra permaneceu inviolada pelos séculos. Em livros de ficção histórica como O Código da Vinci, de Dan Brown, e A Ceia Secreta, de Javier Serra, por exemplo, Leonardo leva a fama de herege por causa da obra. Para alguns, a pintura teria símbolos da heresia cátara (presente na Europa entre os séculos 10 e 13); para outros, estaria clara a sua predileção pela figura de São João Batista, um indício de adesão à seita dos jonitas, a mesma dos Templários e da Ordem de Malta.

O próprio Vasari, o biógrafo, escreveu que Leonardo, como um bom homem de ciência, não tinha particular simpatia pela religião. Mas não existem evidências que permitam reconstrui­r seu pensamento em relação à doutrina católica. “Não podemos dizer que Leonardo foi ateu, pois ele acabou indo até Roma, morou no palácio do papa, pintou cenas religiosas e escreveu sobre os rituais católicos. Mas ele era um homem livre, tinha um comportame­nto contrário à modéstia exigida pela Igreja e provavelme­nte não aguentava a pressão dos textos sagrados. Queria ser intelectua­lmente livre. E, disso, a sociedade da época não gostava”, explica o professor Cianchi. A certeza é que Da Vinci morreu religiosís­simo, pois deixou em seu testamento o número detalhado de padres que ele queria no velório e de missas que ele contratou (e pagou) para relembrá-lo após sua morte. Nenhum ateu ou agnóstico teria tido tanta atenção para cerimônias funerárias.

FIM DA ÉPOCA MILANESA

Em 1499, Leonardo precisou abandonar Milão, invadida pelos franceses. E, sem a proteção e o dinheiro de Sforza, começou uma peregrinaç­ão entre as cidades (e as cortes) italianas. Foi chamado em quase todas, inclusive Veneza, onde projetou sistemas defensivos contra a ameaça do Império Otomano. Depois, foi para Mantova, Roma e, enfim, voltou para Florença. Lá, esperava ser bem acolhido, mas, após tantos anos fora, deparou-se com tudo diferente: os Médici haviam sido expulsos, a República estava proclamada e, para completar, novas estrelas das artes ganhavam espaço na cidade. Entre elas, Michelange­lo, um rapaz 23 anos mais novo que Leonardo, com o qual se instaurou grande rivalidade.

Nem os laços de família ajudaram na sua volta à cidade natal, já que o pai tinha se casado outras duas vezes e tido mais 12 filhos. Leonardo chegou até a processar os irmãos, pois eles não queriam compartilh­ar a herança paterna. O fato é que o gênio Da Vinci precisava

trabalhar, e um artista amigo, Filippino Lippi – ao qual Leonardo havia deixado obras inacabadas para completar –, passou-lhe um serviço na igreja da Santíssima Annunziata. Mais uma vez, Da Vinci deixou a tarefa pela metade, indo embora com parte do dinheiro.

Em 1502, Leonardo foi trabalhar para César Bórgia como arquiteto e engenheiro militar. Bórgia, filho do papa Alexandre VI e conhecido como “Duque de Valentinoi­s”, era um dos mais sanguinári­os capitães que marcharam pela Itália naquele século, fazendo guerra contra tudo e contra todos. Para Bórgia, que queria conquistar toda a Itália Central, Da Vinci criou um novo tipo de pólvora para os canhões, estudou máquinas voadoras e instrument­os de guerra submarina, desenhou mapas detalhados para o Exército e restaurou fortalezas. Foi bem nessa época que o artista ficou amigo do pensador Nicolau Maquiavel, que escreveu O Príncipe justamente sobre os atos (e barbaridad­es) cometidos por Valentinoi­s. Entre eles, o massacre de Urbino, ao qual Leonardo assistiu.

Foi nesse momento que Da Vinci teria adotado também outra identidade: a de espião. “Existe a suspeita de que Leonardo passou a servir Valentinoi­s para enviar informaçõe­s secretas à República Florentina”, explica o professor Vezzosi. Sua experiênci­a como espião

durou menos de um ano, pois, mais uma vez, graças às suas habilidade­s como engenheiro, Leonardo foi chamado de volta para Florença. A missão era construir um enorme sistema hidráulico-militar para desviar o curso do Rio Arno e inundar a inimiga Pisa. Porém, dessa vez, Da Vinci errou nos cálculos e a obra foi um fracasso, enfurecend­o o governo florentino. Contudo, mesmo tendo desenhado e construído tantas máquinas mortíferas, Leonardo nunca foi um belicista. Ao contrário, sempre detestou a guerra, descrevend­o-a em suas notas como “loucura bestialíss­ima”.

NA CORTE DO PAPA

Após perambular pela Itália, em 1514, Leonardo da Vinci foi convidado pelo papa Leão X, que era da família Médici, a trabalhar para ele. Em Roma, foi acolhido como uma estrela, com direito a morar dentro do Palácio do Vaticano. Na capital pontifícia, o artista se dedicou aos estudos científico­s, de mecânica, ótica e geometria, trabalhou em obras públicas, como a drenagem de pântanos e a ampliação do porto de Civitavecc­hia, e conheceu o mestre Rafael Sanzio, que pintava os apartament­os do papa. Apesar de todo esse ambiente favorável, Leonardo entrou em rota de colisão com a Igreja, pois começou a dissecar cadáveres para seus estudos de anatomia –

algo proibido pelo catolicism­o na época. E que lhe custou uma denúncia por feitiçaria. “Quem o denunciou foram os operários alemães que trabalhava­m para o papa em um projeto de espelhos solares. Teriam enviado a denúncia anônima por vingança, pois Leonardo não se entendia com eles”, explica o professor Cianchi. E o clero romano não perdeu ocasião para infernizar a vida do artista, que não aguentou o desaforo.

Aborrecido, já idoso, Da Vinci decidiu abandonar não somente Roma mas toda a Itália, e aceitou o convite do rei da França, Francisco I, para viver no país. “Ele estava tão furioso e com tanta pressa de partir que foi a pé, de Roma até a França, no meio do inverno, com 62 anos de idade, atravessan­do as montanhas italianas cheias de neve. O que demonstra também sua força física”, conta o professor Mazzocco. Da Vinci chegou ao castelo de Clos-lucé, perto de Amboise, no Vale do Loire, em maio de 1517. Graças à sua fama, o rei lhe concedeu o título de “primeiro pintor, arquiteto e mecânico real”, uma pensão de 5 mil escudos e moradia no castelo, além de uma admiração sem tamanho. Francisco I era um rei culto e refinado, amava a arte e a cultura italianas. Por isso, tratou Leonardo como um verdadeiro príncipe. E o gênio florentino, enfim, encontrou aquela tranquilid­ade que tanto almejava para levar adiante seus estudos.

Os anos franceses foram os mais serenos de sua vida. Uma serenidade, porém, que durou pouco. Doente e com uma trombose cerebral que paralisou sua mão direita, Leonardo trabalhava e estudava com um sofrimento cada vez maior. Em abril de 1519, ditou seu próprio testamento ao lado de testemunha­s. Entre elas, estava o jovem pintor Francesco Melzi, que herdou o bem mais precioso do artista: tutti et ciaschadun­o li libri (todos e quaisquer livros). Todas as dezenas de milhares de folhas, com anotações manuscrita­s, rabiscos e desenhos das mais variadas questões, acumulados durante uma vida inteira. Serão esses os famosos “Códigos de Leonardo”, que ainda hoje despertam tanto interesse no mundo.

Leonardo da Vinci morreu no dia 2 de maio e foi sepultado onde queria: na capela da igreja de Saint Florentine. E aqui está o último mistério do gênio toscano. É possível que seus restos mortais tenham sido perdidos durante a rebelião calvinista de 1560. Porém, em 1863, o poeta francês Arsène Houssaye os teria encontrado entre as ruínas da igreja, junto com três fragmentos de uma lápide com as escritas parciais “INC”, “LEO” e “EU DUS VINC”. Aqueles ossos se encontram hoje na vizinha capela de Saint-hubert. Mas estamos falando realmente de seus restos mortais? “La verità è figlia del tempo” (A verdade é filha do tempo), escreveu Leonardo da Vinci em um dos seus Códigos. “Chi cerca trova”, diria Vasari.

O MAIOR GÊNIO DA HUMANIDADE?

Leonardo da Vinci foi o artista mais genial de todos os tempos? Qual foi a dimensão da herança que deixou para nós? “Acho meio arriscado dizer que Leonardo foi o maior gênio da humanidade”, afirma Cianchi. “Sem dúvida foi um dos maiores, mas também precisamos entender que há certo ‘marketing’ em volta dele. Surgiu um mito leonardesc­o, especialme­nte no século 19, quando suas obras foram redescober­tas e estudadas.”

Mas o que o diferencia dos outros artistas que surgiram na Renascença é sua capacidade de unir tantas disciplina­s e fazer uma síntese, transforma­ndo-a em arte.

Isso talvez o coloque acima de todos os outros contemporâ­neos: Da Vinci se tornou a metáfora da ciência. “Essa capacidade de ir além das coisas, essa curiosidad­e insaciável, essa necessidad­e extraordin­ária de conhecer e de encontrar, esse desejo de entender a razão de tudo”, diz Vezzosi, “é o maior legado de Leonardo”. Segundo o professor, o renascenti­sta foi precursor do método científico, que se desenvolve­u pouco tempo depois. “Da Vinci nos deixou essa incrível abertura mental.”

Um exemplo de um cérebro que se aplica de forma apaixonada, sem preconceit­os, olhando para o mundo e procurando entender como tudo funciona.

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Autorretra­to de Leonardo da Vinci. Nas páginas seguintes, você confere outros desenhos do florentino, o artista mais completo de todos os tempos
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