ANOS DE REVOLUÇÃO
A ESCOLA ALEMÃ DE ARQUITETURA E DESIGN SURGIU PARA REAPROXIMAR ARTE, ARTESANATO E PRODUÇÃO INDUSTRIAL. DUROU APENAS 14 ANOS, MAS DEIXOU MARCAS VISÍVEIS AINDA HOJE, DOS MÓVEIS AUTORAIS AOS EDIFÍCIOS DE BRASÍLIA
arecia um simples panfleto de divulgação de um evento de nome curioso, a ser realizado em abril de 1919, na cidade alemã de Weimar: Exibição para Arquitetos Desconhecidos. Escrito por Walter Gropius, arquiteto alemão com 35 anos à época, o texto afirmava: “Hoje as artes existem em isolamento, do qual só podem ser salvas com o esforço consciente e cooperativo de todos os artesãos”. E então proclamava: “Arquitetos, escultores, pintores, nós precisamos retornar ao artesanato! Porque não existe nenhuma diferença essencial entre o artista e o artesão”.
Com a exposição, tinham início os trabalhos da Bauhaus, a escola que deixou marcas definitivas na arquitetura e no design. “A influência da Bauhaus é maior do que nunca”, diz Kathleen James-chakraborty, professora de história da arte e da arquitetura da University College Dublin, na Irlanda. “O estilo, que parecia radical um século atrás, agora se mostra novo e empolgante.”
Mas Walter Gropius era apenas o expoente de uma nova geração de designers e arquitetos interessados em construir edifícios e cômodos de linhas retas, sem ornamentos rebuscados e inúteis. “A aplicação de vidros e dos concretos já era feita ao longo do século 19, mas a liderança de Gropius vai ampliar a ambição dessas aplicações, no sentido de criar uma arquitetura nova, francamente apoiada nos métodos e materiais da indústria, que também produzia motores, turbinas, aviões, automóveis, locomotivas, canhões e navios”, afirma o arquiteto Frederico Flósculo, professor da Universidade de Brasília.
Antes de Gropius, ainda na virada do século, o arquiteto belga Henry van de Velde defendia metas semelhantes. Para ele, era preciso voltar à Era Medieval, uma época em que a arte e o artesanato atuavam lado a lado.
CIDADE CENTRAL
Romper com a aura de arrogância que cercava pintores e escultores, em detrimento dos metalúrgicos e marceneiros, era a principal meta da Escola de Artes e Ofícios, que Van de Velde fundou em 1902. Não por acaso, a instituição ficava em Weimar, que também sediava a Escola de Belas Artes, voltada, desde 1860, para formar artistas preocupados em se comunicar melhor com sua audiência. As duas escolas seriam fundidas para dar origem à Bauhaus, em abril de 1919. Mesmo ano em que, também em Weimar, seria elaborada a nova Constituição do país, que assim deixava de ser um império para se tornar uma república.
Localizada no estado da Turíngia, na parte central da Alemanha, Weimar era um importante centro político e artístico desde o século 18, quando viu florescerem os talentos dos escritores Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller. Décadas depois, a cidade se tornou centro mundial de produção de música, graças a moradores como o compositor Franz Liszt. Era natural, então, que uma revolução na arquitetura ganhasse impulso também em Weimar.
FIGURA INFLUENTE
Em 1919, Walter Gropius era um profissional respeitado. Nascido em Berlim, neto do político prussiano Georg Schwarnweber e sobrinho do arquiteto Martin Gropius, ele havia se casado, em 1915, com Alma Mahler, viúva do compositor Gustav Mahler.
Desde a década anterior, o arquiteto vinha desenvolvendo projetos que buscavam mudar o estilo tradicional do século 19. Trabalhou como aprendiz do arquiteto alemão Peter Behrens, que desenvolveu, para a companhia elétrica alemã AEG, desde uma planta industrial até uma
série de utensílios com design moderno, incluindo mesas e relógios. Behrens, aliás, também empregou o arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe, que seria o terceiro e último diretor da Bauhaus, e o arquiteto suíço Le Corbusier.
Entre 1910 e 1914, Gropius projetou a fachada da fábrica de sapatos Fagus, uma locomotiva de design moderno e uma fábrica para a Exibição Werkbund, em Colônia. Era cotado para assumir a Escola de Artes e Ofícios quando a Primeira Guerra interrompeu qualquer iniciativa que não fosse ligada ao esforço militar.
Antes de retomar os trabalhos com arquitetura, Gropius combateu durante quatro anos. Serviu como major da cavalaria no Front Ocidental e foi condecorado com a Cruz de Ferro duas vezes. Ferido em batalha, ainda se recuperava, no início de 1919, quando assumiu a direção de uma nova escola de arquitetura e design. Foi ele quem escolheu o nome Bauhaus – um neologismo que fundia as palavras bauen (“para construir”) e haus (“casa”).
TRÊS DIRETORES
Nos primeiros anos da Bauhaus, o governo de Weimar apoiou financeiramente a iniciativa. Mas, desde o início, o grupo político oposicionista da região criticava a escola, que considerava influenciada por conceitos comunistas. Não era verdade, mas havia um pretexto forte para os críticos: o fato de existir, em Moscou, uma escola bastante semelhante à Bauhaus, a Vkhutemas (leia mais no quadro). Ao fim de 1924, a oposição conseguiu que o orçamento fosse reduzido pela metade. A direção então optou por buscar um novo endereço: a cidade de Dessau, localizada 170 quilômetros ao norte. A essa altura, já eram professores os pintores Wassily Kandinsky, russo, e Paul Klee, suíço, que lecionavam teoria cromática e desenho analítico. A cidade conheceu o auge da escola e recebeu dezenas de projetos, idealizados por nomes do porte de Friedrich Karl Engemann, Carl Fieger, Hannes Meyer e Mies van der Rohe.
Meyer, aliás, assumiu a direção da Bauhaus em 1928, quando Gropius se afastou. Sob sua direção, a instituição buscou novos parceiros e clientes, e com isso alcançou um balanço financeiro positivo pela primeira vez. Mas o diretor permaneceria apenas dois anos no posto, antes de ser demitido pelo prefeito da cidade. Mies van der Rohe assumiria a escola até o encerramento das atividades, em 1933.
DIÁSPORA PRODUTIVA
Em 1931, os governantes de Dessau, já pressionados pela ascensão do Partido Nazista, decretaram a extinção da escola. Van der Rohe ainda tentou uma última solução: a transferência para Berlim, em 1932. O grupo adquiriu uma fábrica de telefones abandonada e retomou as atividades. Mas não havia mais clima. Em 11 de abril de 1933, policiais fecharam a escola, cercaram o local e prenderam 32 estudantes.
O governo ofereceu a possibilidade de que a escola fosse reaberta, desde que a produção seguisse os ditames estéticos nazistas. A negociação durou poucos meses, até que, a 20 de julho de 1933, apenas 14 anos e três meses depois da exibição de fundação, o corpo de professores dissolveu a Bauhaus em definitivo.
Na mesma época em que a escola de arquitetura e design surgida em Weimar agonizava, também a república democrática fundada na cidade tinha seu fim. Rapidamente o nazismo inauguraria um regime de partido único.
Apesar dos dramas dos professores que foram perseguidos e forçados a deixar a Alemanha nazista, a fuga permitiu que os conceitos da Bauhaus se espalhassem pelo planeta. Gropius seguiu para a Inglaterra em 1934, onde se uniu a um grupo de designers de móveis e casas. Em 1937, mudouse para os Estados Unidos, para se tornar professor de Harvard. Chegou a se tornar chefe do Departamento de Arquitetura até se aposentar, em 1953. Também fundou o coletivo The Architects Collaborative (TAC), muito influente na década de 1950. Faleceria nos EUA, em 1969.
Van der Rohe conseguiu cidadania americana em 1944 e se tornaria diretor do futuro Instituto de Tecnologia de Illinois, em Chicago – a cidade, aliás, se tornou o maior centro da Bauhaus fora da Alemanha, entre as décadas de 1940 e 1960. Até morrer, em 1969, Van der Rohe deixou sua
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VERSÃO SOVIÉTICA
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O governo russo criou uma escola parecida em Moscou. E ela também durou pouco. Em 1920, por ordem de Vladimir Lenin, duas instituições de ensino foram fundidas: a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscovo e a Escola Stroganov de Artes Aplicadas se transformaram na Vkhutemas, acrônimo para Escola Superior de Arte e Técnica. O objetivo era bastante semelhante ao da Bauhaus: conciliar arte, artesanato e indústria em uma prática objetiva e útil, sem perder a capacidade de inovar. Os mais de 2 500 alunos frequentavam aulas de escultura, arquitetura, artes gráficas, marcenaria, cerâmica, impressão e trabalho com tecidos. Instalada em Moscou, a escola existiu por uma década, até que, em 1930, já sob o regime de Josef Stalin, suas atividades foram encerradas.
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marca em uma série de edifícios locais, como o Chicago Federal Plaza e a Casa Farnsworth. Seu estilo minimalista fez dele um dos patriarcas da arquitetura moderna, ao lado de nomes como Le Corbusier e Frank Lloyd Wright.
Já o segundo diretor da escola, Hannes Meyer, seguiu com um grupo de alunos para a União Soviética, onde atuou entre 1930 e 1937. Alguns deles acabariam presos e enviados a gulags, os campos de concentração de Josef Stalin. Mas Meyer atuaria na construção dos principais edifícios da colônia judaica de Birobidjan, na fronteira da Rússia com a China. Seguiria então para o México nos anos 1940, onde dirigiu o Instituto de Urbanismo e Planejamento antes de voltar para sua terra, a Suíça, e morrer em 1954.
“Vale imaginar o quanto a abordagem universalista, conciliadora e experimental da Bauhaus teria contribuído para a crítica de todas as formas controladoras de fazer arte e ciência, se permanecesse aberta e sem censura ao longo da década de 1930”, afirma o professor Frederico Flósculo.
HERANÇA ELEMENTAR
Um dos principais legados foi a invenção de uma maneira nova de formar profissionais. “Sempre foi fundamental para a Bauhaus a invenção de novas pedagogias que pudessem transformar o ensino de arte, artesanato, design e arquitetura”, diz a professora Kathleen James-chakraborty.
A formação na Bauhaus começava com um curso básico de seis meses, comum a todas as especialidades, que fornecia informações sobre escala, proporção, sombra, luz e cor. Dali, o aluno seguia para uma oficina, onde fazia estágio em paralelo com as aulas. Durante esse período, era estimulado a visitar canteiros de fábricas e oficinas de produção de móveis. Ao fim de três anos de formação, chegava o momento de apresentar um trabalho diante de uma banca.
À medida que se expandiram, os conceitos básicos da Bauhaus foram levados a cidades inteiras. Duas, em especial, abrigam marcas características da escola alemã. Em Tel Aviv existe um bairro inteiro, conhecido como Cidade Branca, que reúne 4 mil edifícios no estilo Bauhaus, construídos por arquitetos judeus que deixaram a Alemanha. São prédios sem traços desnecessários e que valorizam a circulação de ar.
E há o caso de Brasília.
Edifícios geométricos, parecidos, sem ornamentos e com grande funcionalidade: os conjuntos de edifícios residenciais e os prédios iguais da Esplanada dos Ministérios são resultado da influência da Bauhaus. “Brasília e Tel Aviv são cidades cuja arquitetura, sem ornamentos, se construiu com base em materiais modernos que seriam impensáveis sem o clima de experimentação dos anos 1920, do qual a Bauhaus foi parte”, diz Kathleen James-chakraborty.
No Brasil, aliás, a escola influenciou a criação do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), uma escola de design industrial criada por Lina Bo Bardi e por Pietro Maria Bardi, que funcionou entre 1951 e 1953 dentro do Museu de Arte de São Paulo (Masp). O objetivo do lugar, anunciado na época da inauguração, deixava clara a influência da Bauhaus: “Formar jovens que se dediquem à arte industrial e se mostrem capazes de desenhar objetos nos quais o gosto e a racionalidade das formas correspondam ao progresso e à mentalidade atualizada”.
O professor Frederico Flósculo identifica a influência da Bauhaus na formação de arquitetos como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. O curso de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília, diz ele, também preserva marcas da escola alemã. “É notável a criação do curso, em 1962, como parte do gigantesco Instituto Central de Ciências, em que um extraordinário experimento de arquitetura industrializada vai abrigar uma grande experiência de ensino, dirigida pelo próprio Niemeyer.”
E assim, em diferentes pontos do planeta, a escola que surgiu para mudar tudo na arquitetura e no design, do estilo à formação dos profissionais, alcançou precisamente o objetivo anunciado em abril de 1919 no panfleto de Gropius: “Desejemos, inventemos, criemos juntos a nova construção do futuro, que enfeixará tudo numa única forma: arquitetura, escultura e pintura que, feita por milhões de mãos de artesãos, se alçará um dia aos céus, como símbolo cristalino de uma nova fé vindoura”.