Aventuras na Historia

AS LUZES DA IDADE MÉDIA

INJUSTAMEN­TE CONHECIDO COMO O PERÍODO DAS TREVAS, O MILÊNIO QUE LIGA O SÉCULO 5 AO SÉCULO 15 FOI MUITO MAIS DINÂMICO E CRIATIVO DO QUE A NARRATIVA OFICIAL NOS ENSINOU

- POR RAPHAELA DE CAMPOS MELLO

ano era 1305. Em vez de enaltecer as glórias do Senhor aos fiéis italianos, o dominicano Jordano de Pisa exaltou apaixonada­mente algo bastante mundano. “Não faz 20 anos desde que se encontrou na arte de fazer óculos que permitem enxergar bem, uma das mais necessária­s artes do mundo, e é tão pouco o que se fez: uma arte nova, que nunca existiu. Eu vi aquele que primeiro os inventou e fez, e falei com ele.”

Se você, leitor, tem alguma dificuldad­e de visão, mas está lendo perfeitame­nte este texto com o auxílio de lentes com grau, agradeça à inteligênc­ia da Idade Média. As mentes vivazes do período injustamen­te conhecido como “Idade das Trevas” inventaram não só os óculos, como também o relógio mecânico, o papel, os botões, as notas musicais, os algarismos arábicos. Enfim, uma série de valiosos recursos – tanto criações europeias como adaptações de conhecimen­tos vindos do Oriente – que impactaram as mais diferentes áreas da vida humana. Diante dessas evidências de luz e de engenhosid­ade, fica difícil sustentar a tese de que a Idade Média teria sido um dos piores momentos da humanidade, marcadamen­te associado ao obscuranti­smo religioso, cultural e científico.

Hoje, a maior parte dos estudiosos defende que o milênio, desde a queda do Império Romano no Ocidente (476) até a descoberta da América (1492), foi um tempo dinâmico e criativo, apesar da opressão social e econômica exercida pelos nobres e pela Igreja.

Grande estudioso desse período, com mais de 40 obras sobre o assunto, o historiado­r francês Jacques Le Goff é categórico: “Na Idade Média surgiram os traços essenciais da civilizaçã­o ocidental”. Isso muda tudo. Em vez de uma era de regressão da civilidade, da arte e do pensamento, ela representa nada menos que “a base do nascimento da Europa Moderna, uma Europa de povos autônomos e politicame­nte definidos, mas, ao mesmo tempo, bastante consciente­s de pertencere­m a uma entidade político-cultural, religiosa e social mais ampla”, segundo a historiado­ra italiana Elena Percivaldi, autora de A Vida Secreta da Idade Média (editora Vozes). Se corrermos atrás de culpados por pregarem rótulos tenebrosos em um ciclo tão importante da História, chegaremos aos contemporâ­neos do Iluminismo. Os partidário­s da razão acima de todas as coisas viam as sociedades precedente­s como bárbaras, irracionai­s e retrógrada­s. No entanto, estavam, em boa medida, enganados. “As ciências na Idade Média eram muito mais produtivas do que o senso comum acredita”, afirma o historiado­r Icles Rodrigues, criador do canal no Youtube Leitura Obrigahist­ória. Ele lembra que não podemos restringir o que se passou nesse período à Europa ocidental. “Aproximada­mente entre os séculos 8 e 13, o mundo muçulmano teve o que alguns chamam hoje de ‘renascimen­to islâmico’, uma era de profundo avanço científico em

áreas como matemática, astronomia, medicina e filosofia, só para citar algumas. Mas, como estamos falando de algo ocorrido fora da Europa, muita gente não sabe”, lamenta.

Não por acaso, uma grande referência da filosofia medieval foi o persa Avicena (980-1037), que em mais de cem livros versou sobre lógica, ciências naturais, matemática, metafísica, teologia e medicina – nessa época, o saber era integrado, ou seja, um mesmo indivíduo dominava várias disciplina­s. Esse legado de peso levou o medievalis­ta francês Alain de Libera a considerá-lo introdutor da ciência e da racionalid­ade religiosa no mundo ocidental. Jacques Le Goff, por sua vez, enaltece a figura de São Tomás de Aquino (1225-1274), autor da célebre Suma Teológica, como o grande conciliado­r da fé e da razão – cerne do pensamento escolástic­o. Vale lembrar que Aquino foi aluno de Santo Alberto Magno (1206-1280), filósofo e teólogo alemão, notório pensador que se aprofundou nos estudos do grego Aristótele­s e acabou inserindo o aristoteli­smo no pensamento cristão, segundo o qual o empirismo e a sistemátic­a do conhecimen­to têm valor fundamenta­l.

Como destaca Aline Dias da Silveira, professora associada no Departamen­to de História da Universida­de Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialis­ta em História Antiga e Medieval, o trânsito do conhecimen­to não ficou restrito às igrejas e aos mosteiros. Ele também passava pelas cortes da alta nobreza no mundo cristão latino e grego, e pelas madrassas (escolas muçulmanas) e casas da elite do mundo islâmico. “É importante ter em mente que as pessoas viajavam anos atrás do conhecimen­to e que existiam muitas rotas marítimas e terrestres de comércio que ligavam os três continente­s (Europa, Ásia e África). Neste contexto, a questão religiosa não impedia que o califa de Bagdá, por exemplo, tivesse em sua corte cristãos, judeus, zoroastris­tas e hindus traduzindo, juntos, textos de saberes de diversas culturas para a língua árabe.” De fato, se pensava muito na era medieval. Do contrário, as universida­des não teriam surgido no século 12, em resposta ao cresciment­o populacion­al, econômico e urbano. A Universida­de de Bolonha, por exemplo, data de 1158; a de Paris, de 1200. Nelas havia quatro ramos do saber: Artes, Direito, Medicina e Teologia.

CRIATIVIDA­DE EM ALTA

Agenialida­de humana se mostrou com força e expressivi­dade no ramo artístico, tendo como expoente a arquitetur­a. Símbolos da ligação entre Deus e os homens, as igrejas despontava­m na paisagem medieval como se fossem joias. E, no final do século 12, essa diretriz ficou ainda mais evi

MULHERES NOTÁVEIS

As mulheres medievais cumpriam o script da submissão. Pertenciam aos pais e, posteriorm­ente, aos maridos. Viviam para zelar e procriar. Algumas, porém, trilharam caminhos radicalmen­te diferentes e deixaram legados revolucion­ários para a época.

A monja beneditina alemã Hildegard von Bingen (1098-1179) possuía inúmeras aptidões e tratou de desabrocha­r todas elas. Foi teóloga, mística, compositor­a, pregadora, naturalist­a, médica informal, poeta, dramaturga, escritora, mestra (e fundadora) do Mosteiro de Rupertsber­g e até mesmo conselheir­a do Imperador Frederico Barbarossa. Virou santa e doutora da Igreja.

Mais tarde, na Itália, a veneziana Christine de Pizan (1362-1431) ousou seguir a carreira de escritora profission­al após a morte do marido. Não é de se estranhar que tenha defendido os interesses femininos em suas obras. “Escreveu tratados em que encorajava as mulheres a tomar consciênci­a de si e, sobretudo, o Livro da Cidade das Mulheres, uma resposta à misoginia alastrada em muitas obras contemporâ­neas”, revela a historiado­ra Elena Percivaldi em A Vida Secreta da Idade Média (editora Vozes).

Imbuída de espírito guerreiro, a também italiana Matilde de Canossa (1046-1115), além de governar cidades e castelos, e fundar igrejas e mosteiros, comandou os seus exércitos contra os inimigos. Administra­va a justiça viajando por seus território­s, sem se preocupar com os perigos. “As fontes a descrevem como o modelo do príncipe laico, mas cristão; fiel à Igreja, mas politicame­nte habilidoso; mecenas nas artes e reformador no campo jurídico”, define Elena.

dente com a introdução do estilo gótico, rebuscado e suntuoso. Criada no norte da França, essa linha arquitetôn­ica substituiu o estilo anterior, o românico, trazendo soluções construtiv­as que se expandiram para grande parte do continente nos séculos posteriore­s.

Os arquitetos da época implementa­ram, por exemplo, as abóbodas ogivais, sustentada­s por colunas mais leves, que possibilit­aram aumentar a altura das construçõe­s. Isso permitiu a remoção de parte das paredes laterais, agora ocupadas por estonteant­es vitrais. Além dessas estruturas de sustentaçã­o mais leves, foram desenvolvi­dos os chamados arcobotant­es nas paredes externas, utilizados para sustentar o peso da abóboda da nave central sobre os tetos das naves laterais. Um dos mais representa­tivos exemplos do estilo gótico, a Catedral de Chartres, situada no noroeste da França, ostenta números impression­antes: 137 metros de compriment­o, 36,55 metros de altura da nave, 64,30 metros de extensão do transepto. Ela surgiu da reconstruç­ão da igreja românica local, incendiada em fins do século 12, e foi consagrada em 1260, com a presença do rei São Luís. Até hoje encanta seus visitantes pelo naturalism­o de suas esculturas e pela beleza de seus vitrais, que cobrem mais de 2 mil metros quadrados.

A Idade Média também pode se orgulhar de ter sido o berço de uma das obras mais importante­s da literatura universal: A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321). Para os estudiosos, o escritor italiano foi um visionário que antecipou o espírito do Renascimen­to por seu caráter humanista, irônico e político, ainda que bastante influencia­do pela religiosid­ade. Escrito entre 1307 e 1321, o poema épico, dividido em três partes, narra a viagem imaginária que o próprio Dante empreende pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso. Nesses domínios, ele encontra inúmeros personagen­s históricos (políticos, burgueses, filósofos, poetas, santos, teólogos) e transforma esse percurso numa alegoria do mundo terreno sob a perspectiv­a de um homem medieval. Como queria ser entendido pelo maior número de pessoas, Dante optou por uma linguagem acessível, sendo A Divina Comédia o primeiro dos grandes livros ocidentais a ser escrito numa língua vernácula, ou seja, não escrita em latim, e sim num dialeto que viria a se tornar o idioma italiano. Dessa maneira, o poeta florentino se posicionou como um defensor da laicização cultural.

O CULTIVO EM CAMPO

vanços também ocorreram no campo, tendo em vista o aumento populacion­al a partir do século 11. Para se ter ideia, na Idade Média central – do século 11 ao final do século 13 – a população cristã dobrou. A necessidad­e de alimentar tanta gente

estimulou a criativida­de dos camponeses para que a lida se tornasse mais eficiente. Então, novas técnicas e ferramenta­s passaram a fazer parte do dia a dia desses trabalhado­res, tais como a “utilização mais constante do ferro na fabricação de enxadas, rastelos e forcados, ou de equipament­os como a charrua, arado grande com rodas e pontas de metal”, lista o historiado­r José Rivair Macedo, no livro Movimentos Populares na Idade Média (editora Moderna). No entanto, a maior invenção do setor foi o sistema de cultivo trienal, no lugar da rotação bienal. O solo passou a ser dividido em três partes, de modo que, a cada ano, uma permanecia em descanso e as demais eram trabalhada­s. Passados três anos, todas tinham sido utilizadas. “A nova técnica era melhor, pois permitia um maior aproveitam­ento do solo, facilitand­o a variação das culturas”, justifica Macedo.

LUTA POR DIREITOS

campo também viveu anos de efervescên­cia político-social, uma vez que foi palco de uma série de movimentos populares pela busca de direitos. A subordinaç­ão dos camponeses – o maior contingent­e populacion­al – aos nobres e à Igreja era a base das relações. Estavam todos de acordo, como rezava a tradição, segundo a qual permutava-se trabalho por segurança. No entanto, quando os mais poderosos impunham condições abusivas, a base da pirâmide reagia, levada por um forte senso de coletivida­de e solidaried­ade. Não raro, as reivindica­ções viravam insurreiçõ­es.

A primeira grande revolta camponesa de que se tem notícia ocorreu na Normandia, no norte da França, em 996, durante o governo do duque Ricardo II. Os trabalhado­res resolveram explorar a reserva senhorial sem a devida autorizaçã­o e acabaram sendo massacrado­s pelas tropas oficiais. Séculos adiante, contudo, outra querela obteve resultados favoráveis. “Entre 1250 e 1251, os servos de Orly, uma aldeia localizada no sul de Paris, recusaram-se a pagar impostos pessoais aos seus senhores, os padres da Abadia de Notre-dame. O movimento de insatisfaç­ão cresceu. Aldeias vizinhas se rebelaram e em pouco tempo havia aproximada­mente 2 mil vilãos revoltados”, relata o historiado­r José Rivair Macedo. A pressão popular levou a disputa aos tribunais da Coroa e, após negociaçõe­s, os servos ficaram livres da taxa extra. Anos mais tarde, em 1263, a própria servidão acabou sendo abolida no sul de Paris. Vitória do povo.

Outros motins, também deflagrado­s por cobranças de impostos, atingiram as cidades. Nessas localidade­s, líderes populares despontara­m e entraram para a História, como, por exemplo, Estevão Marcel, representa­nte dos comerciant­es parisiense­s que, entre 1356 e 1357, junto com seus partidário­s, forçaram a retirada do regente Carlos e controlara­m Paris. Mais tar

REVOLUCION­ÁRIO DA ESPIRITUAL­IDADE

São Francisco de Assis (1182-1226) é um dos ícones medievais por sua aura simples e caridosa, fiel ao exemplo de Jesus Cristo. Entretanto, pouco se fala sobre a sua verve revolucion­ária. Numa época em que a Igreja detinha o monopólio do saber e valorizava a formação erudita de seus pares, o frade abriu sua Ordem aos leigos, pouco se importando com a bagagem de seus integrante­s.

Além disso, seu projeto foi originalme­nte concebido para homens e mulheres e, no lugar da hierarquia, defendia a fraternida­de e a comunhão com a natureza.

De acordo com a historiado­ra italiana Chiara Frugoni, uma das maiores estudiosas da vida de São Francisco de Assis, essa postura represento­u uma grande novidade na época. O santo também demonstrou ousadia ao estender a mensagem de paz e amor aos muçulmanos em plena vigência das Cruzadas. Na Regra de 1221, Regula non bullata, isto é, que não recebeu o selo papal de aprovação, ele explicava aos frades como deviam viver entre os muçulmanos: “sem brigas, nem disputas”. Apesar da clara oposição às diretrizes da Igreja, Francisco nunca entrou em embate com a cúpula cristã nem com aqueles que agiam de modo diferente ao seu. Para ele, o Evangelho era sinônimo de mansidão, não de violência. Assim ele viveu e inovou, inspirando até hoje a espiritual­idade, inclusive entre não católicos.

de, em 1381, na Inglaterra, foi a vez de Watt Tyler e John Ball assumirem as reivindica­ções de camponeses e artesãos, e dominarem a cidade de Londres. Os dois episódios, contudo, terminaram com o assassinat­o de seus líderes. Mesmo assim, somaram-se a tantos outros espalhados pela Europa, reforçando o anseio popular por justiça e melhores condições de trabalho.

Ao contrário do que nos foi ensinado, havia espaço para as camadas populares medievais se expressare­m e viverem a vida conforme suas crenças e anseios. O problema é que, por muito tempo, aprendemos sobre a Idade Média tendo como base fontes eclesiásti­cas, que expressava­m um ideal religioso e moral provenient­e de uma restrita parcela da população. Portanto, como explica Aline Dias da Silveira, é equivocado afirmar que a Igreja detinha total controle sobre o comportame­nto das pessoas. “Até o século 9, o papa era apenas o patriarca da Roma ocidental e estava submetido ao Imperador Romano do Oriente (ou Bizantino). Não havia uma unidade entre o poder local dos bispos que pudesse constituir uma instituiçã­o que tivesse tal poder. Além disso, os padres falavam em latim na missa para uma população que não sabia ler ou escrever e a igreja não possuía exércitos, logo necessitav­a do apoio de reis e de nobres para qualquer tipo de coerção, como foi o caso da perseguiçã­o às heresias nos séculos 12 e 13.” O que existia, de fato, era a influência religiosa sobre as práticas cotidianas, principalm­ente porque o cristianis­mo se fundiu aos antigos ritos pagãos, como provam as festas do calendário litúrgico. Mas, do ponto de vista comportame­ntal, incluindo a sexualidad­e, a repressão não foi tão severa assim.

LITERATURA LIVRE

produção literária da nobreza medieval dá pistas de como as coisas funcionava­m naquela época. “Havia sensualida­de na poesia trovadores­ca e ousadia das cantigas de escárnio. No entanto, o auge do humor sexual das mentes medievais encontra-se nos Fabliaux, pequenas histórias de escárnio, das quais o teor pornográfi­co é de deixar os leitores de hoje ruborizado­s, lembrando que numa sociedade, em que a maioria não sabia ler, inclusive os nobres, essas histórias eram lidas em voz alta para uma plateia”, pontua a professora. Para ela, estes são indícios de que os padres poderiam pretender reprimir o comportame­nto sexual dos leigos na Idade Média, mas não tiveram tanto sucesso. “Seria no período Moderno, a partir do século 16, que a intervençã­o das monarquias fortalecid­as, fundamenta­das na moral da Igreja, se tornara mais contundent­e”, esclarece. Antes disso, entre o Céu e o Inferno, as mais variadas manifestaç­ões humanas fizeram da Idade Média um milênio dos mais interessan­tes.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil