AS LUZES DA IDADE MÉDIA
INJUSTAMENTE CONHECIDO COMO O PERÍODO DAS TREVAS, O MILÊNIO QUE LIGA O SÉCULO 5 AO SÉCULO 15 FOI MUITO MAIS DINÂMICO E CRIATIVO DO QUE A NARRATIVA OFICIAL NOS ENSINOU
ano era 1305. Em vez de enaltecer as glórias do Senhor aos fiéis italianos, o dominicano Jordano de Pisa exaltou apaixonadamente algo bastante mundano. “Não faz 20 anos desde que se encontrou na arte de fazer óculos que permitem enxergar bem, uma das mais necessárias artes do mundo, e é tão pouco o que se fez: uma arte nova, que nunca existiu. Eu vi aquele que primeiro os inventou e fez, e falei com ele.”
Se você, leitor, tem alguma dificuldade de visão, mas está lendo perfeitamente este texto com o auxílio de lentes com grau, agradeça à inteligência da Idade Média. As mentes vivazes do período injustamente conhecido como “Idade das Trevas” inventaram não só os óculos, como também o relógio mecânico, o papel, os botões, as notas musicais, os algarismos arábicos. Enfim, uma série de valiosos recursos – tanto criações europeias como adaptações de conhecimentos vindos do Oriente – que impactaram as mais diferentes áreas da vida humana. Diante dessas evidências de luz e de engenhosidade, fica difícil sustentar a tese de que a Idade Média teria sido um dos piores momentos da humanidade, marcadamente associado ao obscurantismo religioso, cultural e científico.
Hoje, a maior parte dos estudiosos defende que o milênio, desde a queda do Império Romano no Ocidente (476) até a descoberta da América (1492), foi um tempo dinâmico e criativo, apesar da opressão social e econômica exercida pelos nobres e pela Igreja.
Grande estudioso desse período, com mais de 40 obras sobre o assunto, o historiador francês Jacques Le Goff é categórico: “Na Idade Média surgiram os traços essenciais da civilização ocidental”. Isso muda tudo. Em vez de uma era de regressão da civilidade, da arte e do pensamento, ela representa nada menos que “a base do nascimento da Europa Moderna, uma Europa de povos autônomos e politicamente definidos, mas, ao mesmo tempo, bastante conscientes de pertencerem a uma entidade político-cultural, religiosa e social mais ampla”, segundo a historiadora italiana Elena Percivaldi, autora de A Vida Secreta da Idade Média (editora Vozes). Se corrermos atrás de culpados por pregarem rótulos tenebrosos em um ciclo tão importante da História, chegaremos aos contemporâneos do Iluminismo. Os partidários da razão acima de todas as coisas viam as sociedades precedentes como bárbaras, irracionais e retrógradas. No entanto, estavam, em boa medida, enganados. “As ciências na Idade Média eram muito mais produtivas do que o senso comum acredita”, afirma o historiador Icles Rodrigues, criador do canal no Youtube Leitura Obrigahistória. Ele lembra que não podemos restringir o que se passou nesse período à Europa ocidental. “Aproximadamente entre os séculos 8 e 13, o mundo muçulmano teve o que alguns chamam hoje de ‘renascimento islâmico’, uma era de profundo avanço científico em
áreas como matemática, astronomia, medicina e filosofia, só para citar algumas. Mas, como estamos falando de algo ocorrido fora da Europa, muita gente não sabe”, lamenta.
Não por acaso, uma grande referência da filosofia medieval foi o persa Avicena (980-1037), que em mais de cem livros versou sobre lógica, ciências naturais, matemática, metafísica, teologia e medicina – nessa época, o saber era integrado, ou seja, um mesmo indivíduo dominava várias disciplinas. Esse legado de peso levou o medievalista francês Alain de Libera a considerá-lo introdutor da ciência e da racionalidade religiosa no mundo ocidental. Jacques Le Goff, por sua vez, enaltece a figura de São Tomás de Aquino (1225-1274), autor da célebre Suma Teológica, como o grande conciliador da fé e da razão – cerne do pensamento escolástico. Vale lembrar que Aquino foi aluno de Santo Alberto Magno (1206-1280), filósofo e teólogo alemão, notório pensador que se aprofundou nos estudos do grego Aristóteles e acabou inserindo o aristotelismo no pensamento cristão, segundo o qual o empirismo e a sistemática do conhecimento têm valor fundamental.
Como destaca Aline Dias da Silveira, professora associada no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em História Antiga e Medieval, o trânsito do conhecimento não ficou restrito às igrejas e aos mosteiros. Ele também passava pelas cortes da alta nobreza no mundo cristão latino e grego, e pelas madrassas (escolas muçulmanas) e casas da elite do mundo islâmico. “É importante ter em mente que as pessoas viajavam anos atrás do conhecimento e que existiam muitas rotas marítimas e terrestres de comércio que ligavam os três continentes (Europa, Ásia e África). Neste contexto, a questão religiosa não impedia que o califa de Bagdá, por exemplo, tivesse em sua corte cristãos, judeus, zoroastristas e hindus traduzindo, juntos, textos de saberes de diversas culturas para a língua árabe.” De fato, se pensava muito na era medieval. Do contrário, as universidades não teriam surgido no século 12, em resposta ao crescimento populacional, econômico e urbano. A Universidade de Bolonha, por exemplo, data de 1158; a de Paris, de 1200. Nelas havia quatro ramos do saber: Artes, Direito, Medicina e Teologia.
CRIATIVIDADE EM ALTA
Agenialidade humana se mostrou com força e expressividade no ramo artístico, tendo como expoente a arquitetura. Símbolos da ligação entre Deus e os homens, as igrejas despontavam na paisagem medieval como se fossem joias. E, no final do século 12, essa diretriz ficou ainda mais evi
MULHERES NOTÁVEIS
As mulheres medievais cumpriam o script da submissão. Pertenciam aos pais e, posteriormente, aos maridos. Viviam para zelar e procriar. Algumas, porém, trilharam caminhos radicalmente diferentes e deixaram legados revolucionários para a época.
A monja beneditina alemã Hildegard von Bingen (1098-1179) possuía inúmeras aptidões e tratou de desabrochar todas elas. Foi teóloga, mística, compositora, pregadora, naturalista, médica informal, poeta, dramaturga, escritora, mestra (e fundadora) do Mosteiro de Rupertsberg e até mesmo conselheira do Imperador Frederico Barbarossa. Virou santa e doutora da Igreja.
Mais tarde, na Itália, a veneziana Christine de Pizan (1362-1431) ousou seguir a carreira de escritora profissional após a morte do marido. Não é de se estranhar que tenha defendido os interesses femininos em suas obras. “Escreveu tratados em que encorajava as mulheres a tomar consciência de si e, sobretudo, o Livro da Cidade das Mulheres, uma resposta à misoginia alastrada em muitas obras contemporâneas”, revela a historiadora Elena Percivaldi em A Vida Secreta da Idade Média (editora Vozes).
Imbuída de espírito guerreiro, a também italiana Matilde de Canossa (1046-1115), além de governar cidades e castelos, e fundar igrejas e mosteiros, comandou os seus exércitos contra os inimigos. Administrava a justiça viajando por seus territórios, sem se preocupar com os perigos. “As fontes a descrevem como o modelo do príncipe laico, mas cristão; fiel à Igreja, mas politicamente habilidoso; mecenas nas artes e reformador no campo jurídico”, define Elena.
dente com a introdução do estilo gótico, rebuscado e suntuoso. Criada no norte da França, essa linha arquitetônica substituiu o estilo anterior, o românico, trazendo soluções construtivas que se expandiram para grande parte do continente nos séculos posteriores.
Os arquitetos da época implementaram, por exemplo, as abóbodas ogivais, sustentadas por colunas mais leves, que possibilitaram aumentar a altura das construções. Isso permitiu a remoção de parte das paredes laterais, agora ocupadas por estonteantes vitrais. Além dessas estruturas de sustentação mais leves, foram desenvolvidos os chamados arcobotantes nas paredes externas, utilizados para sustentar o peso da abóboda da nave central sobre os tetos das naves laterais. Um dos mais representativos exemplos do estilo gótico, a Catedral de Chartres, situada no noroeste da França, ostenta números impressionantes: 137 metros de comprimento, 36,55 metros de altura da nave, 64,30 metros de extensão do transepto. Ela surgiu da reconstrução da igreja românica local, incendiada em fins do século 12, e foi consagrada em 1260, com a presença do rei São Luís. Até hoje encanta seus visitantes pelo naturalismo de suas esculturas e pela beleza de seus vitrais, que cobrem mais de 2 mil metros quadrados.
A Idade Média também pode se orgulhar de ter sido o berço de uma das obras mais importantes da literatura universal: A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321). Para os estudiosos, o escritor italiano foi um visionário que antecipou o espírito do Renascimento por seu caráter humanista, irônico e político, ainda que bastante influenciado pela religiosidade. Escrito entre 1307 e 1321, o poema épico, dividido em três partes, narra a viagem imaginária que o próprio Dante empreende pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso. Nesses domínios, ele encontra inúmeros personagens históricos (políticos, burgueses, filósofos, poetas, santos, teólogos) e transforma esse percurso numa alegoria do mundo terreno sob a perspectiva de um homem medieval. Como queria ser entendido pelo maior número de pessoas, Dante optou por uma linguagem acessível, sendo A Divina Comédia o primeiro dos grandes livros ocidentais a ser escrito numa língua vernácula, ou seja, não escrita em latim, e sim num dialeto que viria a se tornar o idioma italiano. Dessa maneira, o poeta florentino se posicionou como um defensor da laicização cultural.
O CULTIVO EM CAMPO
vanços também ocorreram no campo, tendo em vista o aumento populacional a partir do século 11. Para se ter ideia, na Idade Média central – do século 11 ao final do século 13 – a população cristã dobrou. A necessidade de alimentar tanta gente
estimulou a criatividade dos camponeses para que a lida se tornasse mais eficiente. Então, novas técnicas e ferramentas passaram a fazer parte do dia a dia desses trabalhadores, tais como a “utilização mais constante do ferro na fabricação de enxadas, rastelos e forcados, ou de equipamentos como a charrua, arado grande com rodas e pontas de metal”, lista o historiador José Rivair Macedo, no livro Movimentos Populares na Idade Média (editora Moderna). No entanto, a maior invenção do setor foi o sistema de cultivo trienal, no lugar da rotação bienal. O solo passou a ser dividido em três partes, de modo que, a cada ano, uma permanecia em descanso e as demais eram trabalhadas. Passados três anos, todas tinham sido utilizadas. “A nova técnica era melhor, pois permitia um maior aproveitamento do solo, facilitando a variação das culturas”, justifica Macedo.
LUTA POR DIREITOS
campo também viveu anos de efervescência político-social, uma vez que foi palco de uma série de movimentos populares pela busca de direitos. A subordinação dos camponeses – o maior contingente populacional – aos nobres e à Igreja era a base das relações. Estavam todos de acordo, como rezava a tradição, segundo a qual permutava-se trabalho por segurança. No entanto, quando os mais poderosos impunham condições abusivas, a base da pirâmide reagia, levada por um forte senso de coletividade e solidariedade. Não raro, as reivindicações viravam insurreições.
A primeira grande revolta camponesa de que se tem notícia ocorreu na Normandia, no norte da França, em 996, durante o governo do duque Ricardo II. Os trabalhadores resolveram explorar a reserva senhorial sem a devida autorização e acabaram sendo massacrados pelas tropas oficiais. Séculos adiante, contudo, outra querela obteve resultados favoráveis. “Entre 1250 e 1251, os servos de Orly, uma aldeia localizada no sul de Paris, recusaram-se a pagar impostos pessoais aos seus senhores, os padres da Abadia de Notre-dame. O movimento de insatisfação cresceu. Aldeias vizinhas se rebelaram e em pouco tempo havia aproximadamente 2 mil vilãos revoltados”, relata o historiador José Rivair Macedo. A pressão popular levou a disputa aos tribunais da Coroa e, após negociações, os servos ficaram livres da taxa extra. Anos mais tarde, em 1263, a própria servidão acabou sendo abolida no sul de Paris. Vitória do povo.
Outros motins, também deflagrados por cobranças de impostos, atingiram as cidades. Nessas localidades, líderes populares despontaram e entraram para a História, como, por exemplo, Estevão Marcel, representante dos comerciantes parisienses que, entre 1356 e 1357, junto com seus partidários, forçaram a retirada do regente Carlos e controlaram Paris. Mais tar
REVOLUCIONÁRIO DA ESPIRITUALIDADE
São Francisco de Assis (1182-1226) é um dos ícones medievais por sua aura simples e caridosa, fiel ao exemplo de Jesus Cristo. Entretanto, pouco se fala sobre a sua verve revolucionária. Numa época em que a Igreja detinha o monopólio do saber e valorizava a formação erudita de seus pares, o frade abriu sua Ordem aos leigos, pouco se importando com a bagagem de seus integrantes.
Além disso, seu projeto foi originalmente concebido para homens e mulheres e, no lugar da hierarquia, defendia a fraternidade e a comunhão com a natureza.
De acordo com a historiadora italiana Chiara Frugoni, uma das maiores estudiosas da vida de São Francisco de Assis, essa postura representou uma grande novidade na época. O santo também demonstrou ousadia ao estender a mensagem de paz e amor aos muçulmanos em plena vigência das Cruzadas. Na Regra de 1221, Regula non bullata, isto é, que não recebeu o selo papal de aprovação, ele explicava aos frades como deviam viver entre os muçulmanos: “sem brigas, nem disputas”. Apesar da clara oposição às diretrizes da Igreja, Francisco nunca entrou em embate com a cúpula cristã nem com aqueles que agiam de modo diferente ao seu. Para ele, o Evangelho era sinônimo de mansidão, não de violência. Assim ele viveu e inovou, inspirando até hoje a espiritualidade, inclusive entre não católicos.
de, em 1381, na Inglaterra, foi a vez de Watt Tyler e John Ball assumirem as reivindicações de camponeses e artesãos, e dominarem a cidade de Londres. Os dois episódios, contudo, terminaram com o assassinato de seus líderes. Mesmo assim, somaram-se a tantos outros espalhados pela Europa, reforçando o anseio popular por justiça e melhores condições de trabalho.
Ao contrário do que nos foi ensinado, havia espaço para as camadas populares medievais se expressarem e viverem a vida conforme suas crenças e anseios. O problema é que, por muito tempo, aprendemos sobre a Idade Média tendo como base fontes eclesiásticas, que expressavam um ideal religioso e moral proveniente de uma restrita parcela da população. Portanto, como explica Aline Dias da Silveira, é equivocado afirmar que a Igreja detinha total controle sobre o comportamento das pessoas. “Até o século 9, o papa era apenas o patriarca da Roma ocidental e estava submetido ao Imperador Romano do Oriente (ou Bizantino). Não havia uma unidade entre o poder local dos bispos que pudesse constituir uma instituição que tivesse tal poder. Além disso, os padres falavam em latim na missa para uma população que não sabia ler ou escrever e a igreja não possuía exércitos, logo necessitava do apoio de reis e de nobres para qualquer tipo de coerção, como foi o caso da perseguição às heresias nos séculos 12 e 13.” O que existia, de fato, era a influência religiosa sobre as práticas cotidianas, principalmente porque o cristianismo se fundiu aos antigos ritos pagãos, como provam as festas do calendário litúrgico. Mas, do ponto de vista comportamental, incluindo a sexualidade, a repressão não foi tão severa assim.
LITERATURA LIVRE
produção literária da nobreza medieval dá pistas de como as coisas funcionavam naquela época. “Havia sensualidade na poesia trovadoresca e ousadia das cantigas de escárnio. No entanto, o auge do humor sexual das mentes medievais encontra-se nos Fabliaux, pequenas histórias de escárnio, das quais o teor pornográfico é de deixar os leitores de hoje ruborizados, lembrando que numa sociedade, em que a maioria não sabia ler, inclusive os nobres, essas histórias eram lidas em voz alta para uma plateia”, pontua a professora. Para ela, estes são indícios de que os padres poderiam pretender reprimir o comportamento sexual dos leigos na Idade Média, mas não tiveram tanto sucesso. “Seria no período Moderno, a partir do século 16, que a intervenção das monarquias fortalecidas, fundamentadas na moral da Igreja, se tornara mais contundente”, esclarece. Antes disso, entre o Céu e o Inferno, as mais variadas manifestações humanas fizeram da Idade Média um milênio dos mais interessantes.