Aventuras na Historia

AS DUAS MORTES DE EVA PERON

HÁ 100 ANOS NASCIA A MAIS CÉLEBRE PRIMEIRADA­MA ARGENTINA, QUE SÓ TEVE SEU DESCANSO FINAL DUAS DÉCADAS DEPOIS DE DEIXAR ESTE MUNDO

- POR XAVIER BARTABURU

Na noite em que Evita morreu, não tardou nem 12 horas para que se tornasse imortal. Trinta minutos depois do último suspiro, seu corpo foi entregue ainda morno ao embalsamad­or Pedro Ara, que varou a madrugada injetando soluções químicas para debelar a morte em seu rápido processo de decomposiç­ão. Ao amanhecer, o corpo de Eva Perón estava incorruptí­vel. Seria velado pelos 13 dias seguintes por 2 milhões de argentinos. Meio milhão beijou seu ataúde. Alguns desmaiaram quando a viram. Outros, segundo se conta, tiveram de ser contidos para não se matar com navalhas e vidrinhos de veneno. Do lado de fora, 18 mil coroas de flores decoravam a fachada do Ministério do Trabalho. As filas alcançavam trinta quadras. Era tanta gente enlutada que,

naquela semana, as gravatas pretas se esgotaram nas lojas de Buenos Aires. Enquanto isso, um sindicato local se apressava em enviar ao Vaticano o pedido de canonizaçã­o de Santa Evita. Nas rádios, vozes solenes anunciavam: “Ha muerto la Jefa Espiritual de la Nación”.

Eva Perón morrera às 20h25 de 27 de julho de 1952, encerrando 33 anos de uma vida breve, mas notável. Naquele mesmo minuto, começava outra existência, a de um corpo inerte, mas não menos vívido, que duraria 24 anos e atravessar­ia continente­s numa epopeia insólita que desafia até a mais desvairada das ficções. Morta, Evita tornou-se mais viva do que quando respirava.

O primeiro ato dessa saga começa em 7 de maio de 1919 no povoado de Los Toldos, a 300 quilômetro­s de Buenos Aires, quando nasce a quinta filha de Juan Duarte, rico fazendeiro, e a cozinheira de sua estância, Juana Ibarguren, a quem tinha por amante. Deram-lhe o nome de Eva María, as duas mulheres cruciais do cristianis­mo numa pessoa só: a santa e a pecadora. Juan Duarte sustentou a família de Evita até morrer, em 1926, desencadea­ndo longos anos de penúria e privações à menina, além da humilhação que as crianças sofriam pelo fato de serem bastardas. Decidida a deixar no interior esse passado de vergonha, Evita mudou-se aos 15 anos para Buenos Aires para se tornar atriz. Em 1935, já interpreta­va melodramas no rádio-teatro, revelando intimidade com os microfones que ganharia contornos épicos nos discursos que viria a fazer da Casa Rosada, o palácio presidenci­al.

Em 1944, Eva Duarte – já atriz consolidad­a na Argentina, com direito a capas de revistas e alguns filmes no currículo, conheceu o general Juan Domingo Perón, então secretário de Trabalho e Previdênci­a Social do governo federal. A ocasião: um festival organizado por Perón com a presença de diversos artistas em solidaried­ade às 8 mil vítimas fatais de um terremoto que havia ocorrido na cidade de San Juan. Perón tinha 48 anos; Evita, 24. Quem seduziu quem, é matéria de especulaçã­o. O fato é que, poucos dias depois, o general já frequentav­a a casa de Eva na Calle Posadas.

Atrizes não eram muito bem-vistas na Argentina da época, mas Perón sentiu que Evita podia lhe ser útil: tinha a seu lado uma companheir­a que, vinda do povo, o aproximava do povo. Com o adicional, claro, do carisma e do poder da

comunicaçã­o radiofônic­a. Evita, por sua vez, sabia que a ideia de se associar a um homem de grande poder alavancari­a sua carreira. “Nesse casamento, se juntaram duas vontades, duas paixões de poder. Não foi um casamento por amor”, escreve Alicia Dujovne Ortiz na biografia Eva Perón: a Madona dos Descamisad­os.

O que Evita não sabia era que seu grande papel não a aguardava na rádio ou nas telas. E a estreia se deu em outubro de 1945, quando Perón foi destituído do cargo de secretário por um golpe civil e militar que culminou com sua prisão. Na madrugada do dia 17, milhares de trabalhado­res marcharam até a Plaza de Mayo e, diante da Casa Rosada, exigiram a libertação do general. Evita foi uma das articulado­ras desse ato, que entrou para a história como o marco fundador do peronismo. Cinco dias depois, casou-se com Perón. Ao cabo de quatro meses, com a vitória do marido nas eleições de 1946, tornou-se a primeira-dama da Argentina.

À semelhança de Getúlio Vargas no Brasil, Perón inaugurou uma era de forte ingerência do Estado na economia e no bem-estar da população. Nacionaliz­ou setores estratégic­os, impulsiono­u a indústria, criou um sistema unificado de saúde pública, instituiu a gratuidade do ensino universitá­rio e concedeu benefícios à classe trabalhado­ra, como a ampliação da aposentado­ria e a criação do décimo terceiro salário. Em seu governo, também as mulheres conquistar­am o direito de votar – um triunfo em grande parte viabilizad­o pela intensa campanha de Eva em favor da aprovação da lei do sufrágio universal, promulgada em 1947. Conhecida como “Ley Evita”, ela também levou as primeiras mulheres a ocupar cargos legislativ­os. No pleito de 1951, foram eleitas 23 deputadas e seis senadoras, todas do Partido Peronista Femenino – criado, é claro, por Evita.

A DAMA DA ESPERANÇA

O foco do peronismo nos direitos sociais foi um campo fértil para que Eva Perón construíss­e uma imagem pública fortemente associada à população de baixa renda, os chamados “descamisad­os”. Já no primeiro ano de mandato montou um gabinete próprio onde começou a organizar sindicatos e promover ações de assistênci­a social. Recebia pessoalmen­te, todos os dias, cada cidadão que chegasse lhe solicitand­o ajuda, fosse um pedido de emprego, moradia ou atendiment­o médico. “Vocês têm o dever de pedir”, dizia. Para um povo acostumado à obediência, aquilo soava quase como uma insurreiçã­o.

Em 1947, foi constituíd­a a Fundação Eva Perón, que passaria a centraliza­r diversas iniciativa­s de auxílio à classe trabalhado­ra. Em pouco mais de quatro anos, o órgão criou 30 mil novos leitos hospitalar­es, botou 16 mil crianças nas escolas e ergueu dezenas de conjuntos habitacion­ais. Evita supervisio­nava pessoalmen­te cada iniciativa, visitando com frequência hospitais, fábricas e bairros populares, onde enfeitiçav­a a audiência com seus discursos de palavras simples, mas contundent­es, marcados por uma retórica impecável talhada pelos anos de experiênci­a como atriz de radionovel­as. E mesmo quando visitava favelas, vestia-se de maneira impecável, desfilando modelos desenhados por estilistas como Christian Dior. Em 1953, numa entrevista à revista Paris Match, o estilista francês declarou: “A única rainha que vesti foi Eva Perón”. Aos críticos, ela rebatia: “Os pobres gostam de me ver linda. Não querem ser protegidos por uma velha malvestida”.

A presença cativante, a fala vigorosa e, sobretudo, o fervor com que Evita se entregava às causas sociais ajudaram a moldar a figura da “Dama da Esperança” dos argentinos. Desenvolve­u-se um forte culto à sua imagem, reforçado pelos meios de comunicaçã­o – vale lembrar que os principais jornais e rádios do país pertenciam ao governo, e os que não eram peronistas sofriam constantes censuras. Tonificado pelo eficiente aparato ideológico presidenci­al, o mito de Evita cresceu a ponto de ela ser venerada quase como santa. Montavam-se altares com

O MITO DE EVITA CRESCEU TANTO ENTRE O POVO A PONTO DE ELA SER

VENERADA QUASE COMO SANTA

flores, velas e fotos arrancadas das revistas. Notas de dinheiro dadas por ela eram emoldurada­s. No Teatro Colón, em Buenos Aires, por muitos anos manteve-se intacta uma taça de champanhe com sua mancha de batom. Em Mendoza, um museu guardava um vidrinho de descongest­ionante que ela usara quando passara pela cidade. Não à toa, Evita era cada vez mais odiada pela elite. Chamavam-na “la yegua”. A égua.

Eva se tornou ainda mais perigosa às vésperas das eleições de 1951, quando os sindicatos propuseram que se candidatas­se à vice de Perón. Para ela, seria uma vitória pessoal, uma maneira de legitimar uma existência que lhe fora sempre negada ou questionad­a: primeiro uma filha bastarda, depois uma atriz namorando um general e por fim uma primeira-dama metendo-se em assuntos de política. O povo estava com ela: em um comício, a multidão diante da Casa Rosada exigiu, fanática, sua candidatur­a. Evita aceitou, mas acabou renunciand­o dias depois.

Não são claros, porém, os motivos de sua renúncia. A biógrafa Alicia Dujovne Ortiz aponta ciúme por parte de Perón: “Ele não havia imaginado a intensidad­e do diálogo amoroso entre Evita e o povo. Encontrar-se obscurecid­o pelo resplendor de uma paixão a dois e excluído do triângulo não estava em seus planos”. Outras fontes sugerem problemas de saúde, que já davam os primeiros sinais na forma de hemorragia­s, desmaios e fortes dores no baixo-ventre. Se assim foi, resta saber o que lhe disseram para convencê-la a desistir da vice-presidênci­a. Pois Eva Perón nunca soube que tinha câncer.

Era um tumor no colo do útero, curiosamen­te o mesmo que matara a primeira esposa de Perón, Aurelia, em 1937 – o que tem levado à hipótese de que o general teria transmitid­o a ambas o vírus do HPV, hoje sabidament­e um fator de risco para esse tipo de câncer. A Evita disseram-lhe que tinha uma “úlcera” no útero. Mesmo emagrecend­o a olhos vistos, ela também se recusava a crer que estivesse doente. Acreditava que era uma desculpa que lhe davam para escanteá-la, logo quando sua força política só fazia crescer. “Sua ideia de que aquilo era mais uma conspiraçã­o para tirá-la da política foi sua condenação à morte. Quando a doença eclodiu, já era tarde demais”, escreveu Nelson Castro no livro Los Últimos Días de Eva: Historia de un Engaño, que trouxe à tona fatos até há pouco tempo ignorados, como a lobotomia que fizeram em Evita na fase final da doença. Segundo o autor, o corte de alguns nervos cranianos teria sido feito para conter a agressivid­ade da primeira-dama, que, talvez ciente de que fosse morrer, teria acirrado sua beligerânc­ia nos últimos meses de vida – chegara inclusive a encomendar da Holanda 5 mil pistolas e 1.500 metralhado­ras para equipar um exército de sindicalis­tas na eventualid­ade de um golpe. Um golpe que Evita não viu.

A INSÓLITA SAGA DO CORPO

Em 1955, o corpo de Eva Perón – embalsamad­o já havia três anos – jazia na sede da Confederaç­ão Geral do Trabalho (CGT), a maior central sindical da Argentina, à espera do mausoléu que seria erguido em sua honra: um monumento de 137 metros de altura (três vezes maior que o Cristo Redentor), em que o sarcófago de Evita descansari­a sob os pés da estátua colossal de um descamisad­o. O sepulcro nunca saiu do papel: neste ano, os militares tomaram o poder e acharam por bem sumir com o cadáver para evitar que se tornasse objeto de culto peronista. Morta, Eva Perón era mais perigosa do que viva.

Cogitou-se cremá-la, lançá-la no Rio da Prata e até dissolvê-la em ácido, mas Pedro Aramburu, líder do golpe e católico devotado, insistiu em lhe dar “sepultura cristã”. Em segredo, claro. Dois meses após a tomada do poder, um comando militar já invadia a sede da CGT para sequestrar o corpo. Pedro Ara, o embalsamad­or, passara os últimos três anos retocando o cadáver, a ponto de fazer de Evita quase uma obra-prima da mumificaçã­o: quem a viu, dizia que parecia dormir. O sequestro ficou a cargo do coronel Carlos Koenig, chefe do Serviço de Inteligênc­ia do Exército, que terminou por desenvolve­r uma espécie de obsessão necrófila pelo corpo de Evita: durante anos, conta-se que rodou com ela por toda Buenos Aires, escondendo-a em lugares como a caçamba de um furgão, os fundos de um cinema, o sótão de uma casa e até mesmo seu escritório, onde convidava pessoas a visitar o corpo.

Acredita-se que os peronistas seguiam o cadáver à distância, pois era comum que, nas redondezas dos esconderij­os, aparecesse­m flores e velas acendidas misteriosa­mente como forma de demarcar o lugar onde a qualquer momento poderia dar-se início a uma peregrinaç­ão. Corre a lenda de que os militares chegaram a fazer três cópias de cera do corpo de Eva Perón para despistar os peronistas, tão perfeitas que a própria mãe da defunta teria se confundido.

Em 1957, temendo que os peronistas roubassem o corpo, Pedro Aramburu ordenou que Evita fosse enviada para fora da Argentina, em uma complexa operação que teria envolvido até o Vaticano. Os detalhes seguem obscuros, mas sabe-se que Eva Perón deixou Buenos Aires sob um nome falso com destino a Gênova, onde foi recebida por uma freira que se encarregar­ia de sepultá-la em um cemitério de Milão. Era uma operação tão bem ajambrada que ninguém conhecia todos os pormenores: nem a freira sabia que estava enterrando Evita, nem o general Aramburu sabia onde a haviam sepultado. Tanto que, em 1970, quando os montoneros, guerrilhei­ros peronistas de esquerda, sequestrar­am o ex-ditador com o intuito de reaver o corpo,

POR MAIS DE 20 ANOS, SEU CORPO VAGOU POR LUGARES INUSITADOS, USADO ATÉ EM RITUAIS DE MAGIA

Aramburu pagou com a vida o fato de desconhece­r seu paradeiro. A execução do general pelos montoneros deflagrou uma crise política que o então ditador argentino, Alejandro Lanusse, achou por bem mitigar. Em 1971, decidiu devolver o corpo de Evita a Perón, que vivia exilado em Madri com sua nova esposa, Isabelita. Mesmo de volta à companhia do ex-marido, porém, seus despojos não tiveram descanso: na casa de Perón, um assistente chamado José López Rega, entusiasta do ocultismo, realizava macabros rituais de exorcismo com o objetivo de transferir a alma de Evita para o corpo de Isabelita.

Dois anos depois, Perón voltou do exílio e foi eleito presidente, com Isabelita como vice. Evita ficou na Espanha, o que rendeu um último e insólito lance dessa funesta odisseia: os montoneros decidiram sequestrar o cadáver do general Aramburu, executado três anos antes, para exigir em troca o retorno do corpo de sua heroína. A “Mãe dos Pobres” só voltou em 1974, após a morte de Perón em pleno exercício da presidênci­a, por iniciativa de Isabelita, que havia assumido o cargo. Por dois anos, Eva e Perón descansara­m lado a lado, na Quinta de Olivos, a residência presidenci­al. Uma saga, porém, que só terminou com mais um golpe de Estado: em 1976, os militares decidiram encerrar essa obsessão pelo corpo embalsamad­o e entregaram a múmia de Evita aos parentes, que finalmente a colocaram na sepultura da família no Cemitério da Recoleta. Não é um mausoléu de 137 metros de altura, mas vive cheio de turistas. E nunca faltam flores cravadas no portão de ferro.

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