Aventuras na Historia

O DESEJO E O REAL

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Em outubro de 1966, Elisa Moreira Salles, então com 37 anos, visitava a China com um grupo de ricaços, industriai­s e banqueiros. A esposa do dono do Unibanco fez filmes amadores da viagem, registrand­o os sorrisos dos amigos na Grande Muralha, mas também um lirismo que não imaginava encontrar. Em pleno alvorecer da Revolução Cultural Chinesa, quando a Guarda Vermelha perpetrava as maiores violências contra intelectua­is e supostos opositores de Mao Tsé-tung, Elisa prestou atenção ao que havia de beleza naquele país e naquele momento. Viu poesia nas mãos de crianças dançando o balé revolucion­ário. E se impression­ou com a devoção do povo ao líder chinês – um misticismo que ela associou à semana da Paixão de Cristo. Segundo João Moreira Salles, seu filho, que descobriu esses registros 40 anos depois, a viagem foi um período em que sua mãe lhe pareceu plenamente feliz. Um comentário que ganha outra dimensão por uma tragédia que ele não expõe em No Intenso Agora: Elisa cometeria suicídio aos 59 anos.

Essas cenas na China, de um colorido vivo, são o ponto de partida para outras filmagens caseiras e outras reflexões, também associadas à segunda metade dos anos 1960. Boa parte do documentár­io trata

de maio de 1968, quando estudantes franceses quiseram mudar o mundo, lutando contra a autoridade nas fábricas e universida­des. A euforia daqueles jovens, que achavam que ser realista era pedir o impossível, é associada à da mãe do realizador. Ambos viam a história acontecer diante dos olhos – como espectador­es simpáticos ou agentes da revolução. “Era tão bom estar vivo e alerta naquele período que ninguém queria dormir”, comenta João Moreira Salles, cuja voz em off é um guia sentimenta­l das transições do filme.

No trecho final do documentár­io, entretanto, resta a desilusão. Uma marcha de franceses conservado­res, estimulada por um discurso do presidente, reafirma a tradição que a juventude desafiava. No mesmo ano, em Praga, tanques soviéticos esmagam qualquer ambição democrátic­a na Tchecoslov­áquia. Uma opção de montagem que se abre a uma leitura freudiana: a mãe e os jovens em pleno gozo de uma felicidade irracional, de desordem, seguida pela repressão do pai (Charles de Gaulle, restaurand­o a disciplina na França). Um acomodamen­to ao status quo que transforma a excitação no desalento de uma sociedade que é flor carnívora – como anunciava o slogan de uma Paris que nunca foi tão jovem.

ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS

INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)

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Brasil, 2017
Direção: João Moreira Salles
No Intenso Agora Brasil, 2017 Direção: João Moreira Salles

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