CAPA: IRMÃ DULCE ENTRA PARA A HISTÓRIA DO VATICANO COMO A PRIMEIRA MULHER NASCIDA NO BRASIL A SER CANONIZADA
PRIMEIRA MULHER NASCIDA NO BRASIL A SER CANONIZADA, IRMÃ DULCE ENTRA PARA A HISTÓRIA OFICIAL DO VATICANO
Acomitiva do presidente Eurico Gaspar Dutra cumpria o roteiro pré-determinado em direção à Igreja do Bonfim, na capital baiana. Visita de praxe ao santuário. Ponto turístico. Fotografias para os jornais. Tudo dentro do previsto. Até uma aglomeração se formar, impedindo a passagem da carreata. Surpresa. Uma freira franzina, acompanhada de 300 crianças, solicitava ser ouvida pelo dirigente da Nação. Com voz suave e olhar compassivo, rogou ao militar que fosse, simbolicamente, seu avô. Fora atendida. Sem demora, recursos federais aportavam nas obras assistenciais de Irmã Dulce (1914-1992). A assertividade, traço de personalidade predominante na religiosa nascida em Salvador, destoava de sua aparência miúda, fragilizada pelos problemas respiratórios, que despontaram na juventude e se agravaram com o passar dos anos. Não tinha constrangimento algum em pedir pelos pobres e doentes. Com uma mão, batia na porta de políticos, empresários e bem-nascidos; com a outra, acolhia e confortava os necessitados.
Certa vez, conta o jornalista Jorge Gauthier, no livro-reportagem Irmã Dulce: Os Milagres pela Fé (Editora Autografia), a freira viu uma de suas palmas ser preenchida com o cuspe
de um comerciante, que se recusava a contribuir. Sem se abalar, o “Anjo Bom da Bahia”, como ficou conhecida, estendeu a mão limpa, explicando que a grosseria tinha sido a ela endereçada, mas que a outra palma continuava livre para receber a doação aos desvalidos.
“Firmeza de propósito”. “Vocação inabalável”. “Força sobre-humana”. Todas as expressões explicam a obstinação da religiosa em auxiliar a humanidade. Mesmo abatida, ela conseguia realizar o impossível. “A vida é breve. Por que não aproveitamos o tempo e buscamos uma vida de amor a Deus?”, a então noviça indagou à irmã Dulcinha numa carta datada de 1933.
No instante em que riscava o papel, Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, filha de um dentista e de uma dona de casa, irmã de quatro, não imaginava que sua devoção e futura obra caridosa – além de dois reconhecidos milagres (leia no boxe da página 38 as características dessa benesse divina) – seriam responsáveis por cravar seu nome no álbum dos santos católicos. A cerimônia de canonização da religiosa, prevista para acontecer no dia 13 de outubro, no Vaticano, será presidida pelo papa Francisco. E passará a se chamar Santa Dulce dos Pobres, a primeira mulher nascida no Brasil a receber tal honraria.
PREDESTINADA AO SERVIÇO
A vocação religiosa se mostrou aos 12 anos, quando a menina visitou uma favela acompanhada da tia. Não suportou testemunhar a miséria. Tinha de fazer algo. Decidiu, então, alimentar os pobres e cuidar dos enfermos na porta de casa. Por isso, passou a ser chamada carinhosamente de Mariinha.
Estava certa de que vestiria o hábito de freira, mas seu pai quis que se tornasse professora. Concluiu o curso. Bateu o pé. E, no dia 9 de fevereiro de 1933, ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição, localizada no interior de Sergipe. Seis meses depois, tornava-se oficialmente freira e assumia a alcunha Irmã Dulce, em homenagem à mãe, falecida quando a garota tinha 7 anos de idade, após dar à luz sua irmã Regina, que veio a morrer pouco depois. Um ano mais tarde, estava liberada para seguir sua missão humanitária em outras localidades. Por sorte, foi encaminhada para sua terra natal, onde iniciou um duradouro e gigantesco trabalho social.
LEGADO HUMANITÁRIO
Quem conviveu com Irmã Dulce diz que ela conjugava três papéis: mãe carinhosa, mas que sabia a hora de ser firme; administradora visionária; e religiosa disciplinada. Rezava dois terços todos os dias – um às 6 da manhã; outro às 3 da tarde –, além de sempre recorrer ao seu santo querido, Antônio, padroeiro dos pobres.
Fincada nesse tripé, ela fundou, em 1936, a União Operária São Francisco, primeiro movimento cristão operário da Bahia. No ano seguinte, a entidade se converteu no Círculo Operário do Estado, centro de cultura, recreação e proteção social das famílias da classe trabalhadora. A manutenção da iniciativa era possível graças à arrecadação de três cinemas construídos com doações: Plataforma, São Caetano e, mais tarde, o Roma. Em 1939, inaugurou ainda o Colégio Santo Antônio, escola pública voltada para operários e seus filhos. Irmã Dulce não sossegava. Saía pelas ruas acudindo doentes e famintos. Não esperava que eles chegassem até ela. Cada vez mais aflita, sem ter onde abrigar os miseráveis, fez história num ato de ousadia. Em 1949, ocupou o galinheiro ao lado do Convento Santo Antônio, adaptado para acomodar 70 enfermos. Era o começo de um legado vigoroso em prol da saúde das classes desfavorecidas.
Sua intervenção cresceu e, em 1959, recebeu o estatuto de Obras Sociais Irmã Dulce (OSID). No ano seguinte, ela inaugurou o Albergue Santo Antônio, com 150 leitos. Atualmente, a
HÁ 70 ANOS, A FREIRA OCUPOU O GALINHEIRO DO CONVENTO PARA
ACOMODAR 70 DOENTES DAS RUAS
entidade filantrópica abriga um dos maiores complexos de saúde 100% SUS do país, com 21 núcleos e cerca de 3,5 milhões de procedimentos ambulatoriais realizados por ano na Bahia.
CRÍTICAS E HONRARIAS
A dedicação ilimitada ao trabalho social, contudo, lhe custou caro. Suas irmãs na congregação entenderam que a freira estava distante das rotinas da clausura e, por isso, ela passou, de 1965 a 1975, por um período de exclaustração, espécie de suspensão das atividades religiosas. No entanto, Irmã Dulce continuou usando o hábito.
Por outro lado, em 1988, seu nome entrou na disputa pelo Prêmio Nobel da Paz, por indicação do então presidente José Sarney. Seus esforços teriam sido reconhecidos à altura, não tivesse o russo Mikhail Gorbachev tomado a frente e angariado a láurea pela contribuição para o fim da Guerra Fria. Outra nobre demonstração de reconhecimento foi a visita do papa João Paulo II ao seu leito, cinco meses antes da sua morte. Era a segunda vez que eles se encontravam em terras brasileiras. Na primeira, em 1980, o Sumo Pontífice tinha incentivado a freira a seguir com suas obras, mas com uma ressalva: que ela cuidasse melhor da sua saúde.
No final da vida, bastante debilitada por um enfisema pulmonar, Irmã Dulce não se conformava em permanecer na cama, longe daqueles que careciam da sua ajuda e aconselhamentos. Não parava durante o dia e, à noite, ainda encontrava fôlego para rodar a cidade numa Kombi recolhendo doentes e levando-os ao hospital.
O “Anjo Bom da Bahia” finalmente descansou no dia 13 de março de 1992, aos 77 anos, no Convento Santo Antônio. Seu túmulo definitivo, a Capela das Relíquias, localizada no Santuário de Irmã Dulce, no bairro do Bonfim, em Salvador, para onde seus restos mortais foram transferidos, vive coberto de agradecimentos pelas dádivas alcançadas ao longo da sua vida.
DOS MÁRTIRES AOS SANTOS
Irmã Dulce se juntará a outros santos com história no Brasil, previamente reconhecidos pelo Vaticano: Madre Paulina, nascida na Itália (canonizada em 2002), Frei Galvão (2007), padre José de Anchieta, nascido na Espanha (2014), além dos mártires Roque Gonzalez, Afonso Rodrigues e João de Castilho, mortos no Rio Grande do Sul no século 17 (1983) e os 30 mártires assassinados também no século 17, mas no Rio Grande do Norte (2017). A canonização da baiana será uma das mais rápidas da história (27 anos após seu falecimento), atrás somente da santificação de Madre Teresa de Calcutá (que ocorreu 19 anos após o falecimento da religiosa) e do papa João Paulo II (nove anos após sua morte) – para se ter ideia, Joana d’arc foi canonizada 489 anos após seu fim trágico na fogueira.
O processo da freira brasileira se iniciou no ano 2000 e o primeiro milagre associado à intercessão dela – a cura de uma hemorragia gravíssima após um parto seguido de complicações – foi atestado pelo papa João Paulo II em 2003. Seis anos depois, o papa Bento 16 lhe concedeu o título de Venerável (confira a sequência de honrarias no boxe da página 37) e, em 2011, ela foi beatificada. O anúncio da canonização se deu em maio deste ano, após a confirmação de um segundo milagre. De acordo com o comunicado oficial, um cidadão baiano teria se curado de uma cegueira por intercessão da religiosa.
O evento histórico para os brasileiros, especialmente para o povo da Bahia, representa uma tradição que atravessa os milênios e remonta aos primórdios do cristianismo (veja a linha do tempo desta matéria). “Durante os três primeiros séculos, ante a perseguição dos cristãos, aqueles que morriam para não renegar Cristo e a fé, os mártires, eram venerados como santos. Com o tempo, se exigiu uma investigação prévia do fato do martírio, da vida e dos milagres do confessor, investigação que se fez cada vez
SEU NOME ENTROU NA DISPUTA PELO PRÊMIO NOBEL DA PAZ, MAS
PERDEU PARA O RUSSO GORBACHEV
mais rígida e jurídica, até se adotar, na Idade Média, a forma de um verdadeiro processo”, explica o padre Rogério Neves, doutor em Direito Canônico e professor no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL).
São Jorge, por exemplo, é um caso emblemático do nascedouro da adoração cristã. O soldado romano (275-303) não realizou milagre algum. Sua saga é que foi digna de culto, sendo um dos nomes mais venerados tanto na Igreja Católica Romana e na Igreja Ortodoxa, como também na tradição Anglicana. Além de partilhar sua riqueza com os pobres, o militar declarou sua conversão ao cristianismo diante do imperador Diocleciano, grande algoz dos seguidores de Cristo. Morreu degolado.
Um aspecto fundamental, contudo, se mantém intacto desde o princípio até os dias atuais: a fama de santo nasce da fé dos fiéis. É o clamor popular que move as primeiras engrenagens e deflagra as subsequentes investigações eclesiásticas. Por isso, há que se ter cautela e rigor – olhos afiados para detectar possíveis enganos e enganadores; e visões sobrenaturais onde só existe a normalidade cotidiana. Como há muita paixão envolvida, o Vaticano precisa se certificar de que a santidade de um religioso é fato concreto e verificável. “Por isso, sempre haverá muito mais casos de fama de santidade na opinião popular do que nas declarações de santidade da Igreja. Porque nem tudo que reluz é ouro”, observa o padre e professor, em São Paulo.
É impossível predeterminar a duração de um processo de canonização, pois uma série de variáveis são analisadas caso a caso. De toda maneira, o trajeto é longo. Atualmente, esclarece Neves, as seguintes etapas são contempladas: um bispo local deve pedir à Santa Sé a declaração de não se opor ao processo; depois há a constituição do tribunal, com os vários interventores e a oitiva de testemunha; a pesquisa histórica encabeçada por uma comissão própria de especialistas, a clausura do processo e o envio para a fase romana, na qual se deve confirmar a validade de tudo o que foi feito e estabelecer novo procedimento, com novos interventores.
Em seguida, chega-se à elaboração da chamada Positio, relatório detalhado, posteriormente encaminhado à Plenária da Congregação para as Causas dos Santos. Só então acontece o reconhecimento das virtudes do Servo de Deus ou do martírio. Com esse aval, o Servo de Deus passa a ser chamado de Venerável. Mas, para que seja beatificado, fica faltando a constatação de um verdadeiro milagre (salvo para o martírio). “O milagre é um processo à parte, com uma fase diocesana ou local e outra romana, assessorada por profissionais de várias especialidades, inclusive ateus, para se chegar à constatação de que o fato é inexplicável e, além disso, tem um nexo causal com a oração de alguém, pedindo a intercessão daquele Venerável”, destaca o padre. Atestado este primeiro milagre, espera-se, então, por um segundo, ocorrido após a beatificação. Se comprovado, a figura pode, enfim, se tornar santa.
INCENTIVADOR DA SANTIDADE
A “contabilidade” canônica registra o número de beatos e santos oficialmente reconhecidos em cada pontificado. Alguns foram modestos, como o de João XXIII (1958-1963), responsável por cinco beatificações, dez canonizações e uma confirmação de culto (proclamação de santidade que não passou por processo canônico); outros, medianos, como o de Pio XII (1939-1958), com 170 beatificações, 33 canonizações e nenhuma confirmação de culto.
Ninguém até hoje superou a marca do pontificado de João Paulo II (1978-2005), promotor de 1338 beatificações, 482 canonizações e duas confirmações de culto. Entusiasta dessa temática, o polonês passou ele mesmo a presidir as beatificações e canonizações, sempre em Roma. Bento XVI, depois dele, voltou à prática de
HOJE, O HOSPITAL INAUGURADO POR IRMÃ DULCE É UM DOS MAIORES COMPLEXOS
100% SUS DO PAÍS
realizar, em Roma, apenas as canonizações, deixando a beatificação para celebração local, em geral, para o prefeito da Congregação das Causas dos Santos. “João Paulo II incrementou grandemente tal atividade para evidenciar que existiram e existem santos apesar de todos os obstáculos que a história possa opor a uma vida fiel a Cristo”, analisa Rogério Neves. Segundo ele, o que pode parecer irreal para muitas pessoas, uma vida marcada por virtudes e sacrifícios de elevado valor moral e espiritual, para a Igreja Católica é algo ao alcance de qualquer mortal. “Todo cristão é, desde o seu Batismo, chamado à santidade; embora esta vocação pareça utópica em muitos casos, é de crer que Deus não chama criatura alguma à mediocridade e, consequentemente, tem a graça necessária para levar a fragilidade de cada ser humano aos cumes da perfeição”, pontua o professor no Centro Universitário Salesiano.
O polonês enxergou a graça da santidade em muitos cristãos, como atestam os números. Alguns casos são bastante curiosos, como a canonização, em 10 de outubro de 1982, do padre Maximiliano Maria Kolbe. Franciscano nascido na Polônia, que, em 1941, foi prisioneiro no Campo de Concentração de Auschwitz e se ofereceu para morrer no lugar de um leigo, pai de família, que tinha sido condenado em represália pela fuga de outro prisioneiro. “Na época, chamou a atenção o fato de que o papa o tivesse canonizado como mártir (isto é, quem morre em nome da fé), quando tinha morrido por amor ao próximo”, lembra.
Em 31 de julho de 2002, João Paulo II canonizou o índio mexicano Juan Diego Cuauhtlatoatzin (1474-1548), vidente de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América Latina. Ele também honrou os italianos Luigi (1880-1951) e Maria Beltrame Quattrocchi (1884-1965), primeiro casal beatificado na história da Igreja, em 21 de outubro de 2001, por sua história conjunta de caridade e alinhamento ao Evangelho. Acontecimento inédito no Vaticano. Chama também a atenção o fato de que os quatro filhos desse matrimônio, ao crescerem, sentiram o chamado de Deus à vida religiosa: Filippo (don Tarcisio) é padre diocesano; Stefania (irmã Maria Cecilia) é freira beneditina; Cesare (padre Paolino) é monge trapista, e Enrichetta, a caçula do quarteto, é leiga consagrada.
O próprio Pontífice passou para o outro lado da tribuna. Em 2011, João Paulo II foi beatificado por seu sucessor, o papa Bento XVI (quando ficou comprovado que a freira francesa Marie Simon-pierre foi curada da doença de Parkinson por intercessão do polonês). Três anos mais tarde, o segundo milagre foi atribuído a ele (a cura de um aneurisma cerebral) e, então, João Paulo II foi declarado Santo pelo papa Francisco.
ANDAR COM FÉ
Em pleno século 21, o reconhecimento da santidade segue como uma prática cercada de fervor de um lado e de apuro técnico do outro. Como evidenciam as procissões e romarias que congregam multidões de pessoas, a fé é um fenômeno atemporal. Em cada morada católica, ainda há espaço para um ou mais santos. “Parece ser da natureza do ser humano a busca por modelos que sejam capazes de manter viva a certeza de que os ideais são possíveis”, opina Neves. É por isso que o Código de Direito Canônico é claro em relação ao papel dos santos na vida dos fiéis. Eles são intercessores das súplicas e também servem de exemplo para uma vida edificante.
Mas as virtudes de uma Irmã Dulce, por exemplo, não estariam muito além das nossas capacidades humanas? O padre está seguro de que não devemos nos apequenar com esse tipo de comparação. “Seria um absurdo e uma injustiça propor a santidade como meta para as pessoas se fosse impossível. A canonização é o reconhecimento de que ela não é estranha ao ser humano, antes, é sua vocação primeira”.
“A CANONIZAÇÃO É O RECONHECIMENTO DE QUE A SANTIDADE É A PRIMEIRA VOCAÇÃO
DO SER HUMANO”