LITERATURA
HÁ 50 ANOS MORRIA O PAPA DA GERAÇÃO BEAT, QUE INFLUENCIOU A CONTRACULTURA E O MOVIMENTO HIPPIE
Jack Kerouac, o papa da Geração Beat que influenciou a contracultura nos EUA
Eu sou católico, então não posso cometer suicídio, mas eu planejo beber até morrer.” Jean-louis Lebris de Kerouac, americano de ascendência franco-canadense, conseguiu cumprir sua promessa 50 anos atrás – em outubro de 1969. A esposa, Stella Sampas, acostumada a testemunhar seus mal-estares provocados pela bebedeira, ouviu-o vomitando sangue no banheiro, na casa em que moravam na Flórida. Chamou a ambulância e os médicos logo viram que o caso era de cirurgia. Mas era tarde. O escritor que influenciou toda a contracultura e o nascimento do movimento hippie – e que o mundo conheceria como Jack Kerouac, papa da Geração Beat – morria jovem, aos 47 anos. Uma hemorragia abdominal associada à cirrose hepática – alimentada em anos de consumo pesado de vinho licoroso, uísque e o que aparecesse pela frente – confirmou a profecia do artista. O cansaço de si mesmo – ou da figura que ele projetou após a publicação de On the Road, um dos maiores clássicos literários americanos – foi o combustível dessa autodestruição, que levou ao fim precoce de um dos mais importantes escritores do século 20. Mas a fama que Kerouac repudiou em seu crepúsculo foi a justa identificação entre o autor e seu livro mais importante.
A obra-prima que o levou ao estrelato é profundamente autobiográfica, conta em detalhes os primeiros encontros dos escritores que fundariam a Beat Generation, suas viagens de carona ou ao lado do camarada Neal Cassady através dos EUA, entre o fim dos anos 1940 e o começo dos 1950, e também a identificação desses homens de letras com a liberdade criativa do jazz bebop – estilo musical que teria influência na forma como Kerouac construiu seu registro.
À velocidade das notas nos solos de saxofone, o escritor respondeu com um método de prosa espontânea, rápida, baseado na certeza de que o primeiro pensamento é sempre o melhor. “Gosto de muitas coisas ao mesmo tempo e me con
fundo inteiro e fico todo enrolado correndo de um destino falido para outro até desistir. Assim é a noite, e é isso o que ela faz com você. Eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser minha própria confusão.” Em 1951, Jack concluiu o manuscrito original de On the Road em apenas 20 dias. Para não ter de ficar trocando de folha enquanto datilografava freneticamente, enfiou na máquina de escrever um rolo de 36 metros de papel de telex. Foi com essa avalanche de palavras – com pouca pontuação e muito sexo, bebida, entorpecentes, jazz e quilômetros de estrada – que o autor bateu na porta de editoras durante anos. Até que a Viking Press aceitasse o material, cortasse centenas de páginas, acrescentasse umas tantas vírgulas, quebrasse parágrafos e limasse um pouco do que outros editores associaram com pornografia e apologia às drogas. Ainda assim, editado para o mercado, o livro era Kerouac puro, um míssil que atingiu em cheio o conservadorismo americano, atraiu milhares de seguidores e abriu os olhos dos Estados Unidos para um público que o país ignorava até então: o jovem.
LIBERTÁRIOS NO PÓS-GUERRA
Nos anos 1950, nos EUA, e em muitas outras partes do mundo, só havia dois tipos de pessoas: crianças e adultos. Um moleque se vestia como menino até que, em dado momento de sua adolescência, já lhe empurravam paletó e gravata, e responsabilidades de homem feito. A menina, de criança logo passava a copiar as práticas de dona de casa da mãe. Não é estranho, portanto, que muitos se casassem tão cedo.
Os textos – e os hábitos – dos Beats mostravam uma alternativa surpreendente (para a época): que jovens de 20 anos podiam ter outros interesses. Eles queriam viajar sem programação ou dinheiro contado, queriam passar suas noites em festas intermináveis ou em longas conversas em apartamentos divagando sobre a arte, o amor
ou a guerra. Queriam experimentar de tudo e testar os limites de sua sexualidade e independência. Hoje você diria que isso é coisa de universitário. Sim! Coisa de jovem. Algo inimaginável numa perspectiva que só entendia a infância ou a formalidade anacrônica. Expoentes Beats como Kerouac, o poeta Allen Ginsberg e o amigo marginal Neal Cassady – a grande inspiração de On the Road – surgem em retratos dos anos 1950 em jeans e camiseta, sendo que mesmo dez anos depois os Beatles e os Rolling Stones – que abriram de vez a porta para a cultura jovem – ainda passariam um bom tempo fazendo shows de rock vestindo terno.
Kerouac se encontrou pela primeira vez com os dois outros grandes escritores dessa geração – Ginsberg e o junkie William Burroughs – em 1944. No ano seguinte, os EUA atirariam duas bombas atômicas no Japão, dando fim à Segunda Guerra e saindo do conflito como os líderes de uma nova ordem internacional. Esse período foi, assim, de exaltação do American Dream, da busca de prosperidade pelas vias do capitalismo, de estímulo ao consumo e a glorificação de uma estrutura familiar em que a mulher adulta buscava ser a gerente doméstica perfeita (cercada dos melhores eletrodomésticos), enquanto o homem saía para o escritório em busca do sustento. Os Beats deram voz a um inconformismo contra esse status quo, rejeitando uma sociedade movida pelo capital e pelos valores conservadores. Embora cada escritor tivesse suas idiossincrasias, havia um sentimento geral de que o capitalismo destruía o humanismo, era antiético e ia contra a ideia de igualdade social. Os livros dessa turma mostravam uma América menos
A NOVA GERAÇÃO DE ESCRITORES ROMPEU COM AS AMARRAS DA LITERATURA NORTE-AMERICANA
dourada, com seus vagabundos, outsiders, seus imigrantes misturando-se aos universitários e poetas, que por sua vez idolatravam os músicos negros do jazz. Uma América menos pudica também: Kerouac e companhia acreditavam que a arte deveria se sobrepor à moralidade convencional. E isso – como ocorre até hoje – obviamente lhes trouxe problemas.
Em seu livro Uivo, o poeta Allen Ginsberg expôs abertamente sua homossexualidade e o consumo de drogas de seus pares, numa linguagem que rompia com a estrutura da poesia formal – sem esconder falos, orifícios e os palavrões que a arte até então varria para debaixo do tapete. Falando sobre si e os outros Beats, Ginsberg apresentava aos leitores um grupo de iconoclastas... “que foram detidos em suas barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York (...) com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e caralhos e intermináveis orgias”. Isso em 1956.
Não foi surpresa, então, que Uivo acabasse apreendido pela polícia de São Francisco sob acusação de obscenidade. Depois de um julgamento que chamou atenção na mídia, no qual discutiu-se a liberdade de expressão, a obra foi liberada – e vendeu milhões de exemplares, a exemplo do sucesso tsunâmico de On the Road.
CÂNONE OUTSIDER
O êxito comercial da Geração Beat foi um furacão que arrastou a juventude americana, praticamente parindo a contracultura e dando legitimidade a comportamentos vistos como alternativos. Sua influência foi determinante para a revolução sexual que tirou muitos gays do armário e deu uma autonomia nunca vista às mulheres. Também foi ponto de partida para militâncias de minorias que, pela primeira vez, estavam ganhando protagonismo em obras de alcance popular. On the Road comparava os negros jazzistas com semideuses gregos ou orá
culos, porta-vozes da liberdade existencial que a TV censurava. Em outro livro de Kerouac, Os Subterrâneos, seu alter ego apaixona-se por Mardou Fox, uma mulher independente e arrebatadora, meio negra, meio índia – distante dos padrões das heroínas americanas.
A concentração dos Beats, durante um tempo, em São Francisco, porto onde chegavam navios da Ásia, fez com que os escritores adotassem elementos da cultura oriental. Assim acabaram disseminando budismo e meditação antes que os roqueiros da segunda metade dos anos 1960 – Beatles à frente – se interessassem pela filosofia indiana. Obras dos Beats inspiraram ainda a consciência ecológica, a luta contra a censura e a desmistificação de drogas leves, como a maconha. Não é à toa que são considerados os precursores do movimento hippie, que levou sua contestação e desapego material a novos patamares – até acabarem absorvidos pelo sistema. Depois de On the Road, milhares de jovens americanos confrontaram os sonhos de grandeza de seus pais e saíram de casa com a mochila nas costas, determinados a cruzar o país de carona. Não é que todos desprezassem um futuro profissional, ter casa, carro e filhos. É que, pela primeira vez, entendiam que, antes de abraçar ou não a tradição, precisavam encarar uma estrada – tão real quanto metafórica – rumo ao autoconhecimento. Deram-se o direito de ser jovens – por seis meses ou pela vida inteira.
Os roqueiros, claro, beberam dessa fonte. Jim Morrison, líder dos The Doors, disse que On the Road mudou sua vida, enquanto Ginsberg foi adotado por Bob Dylan, tornando-se amigo íntimo e confidente do músico. Já o maluco-beleza Neal Cassady se tornaria motorista de um “ônibus alucinógeno”, que levava Jerry Garcia, do grupo psicodélico Grateful Dead, e outros artistas que viajavam movidos a LSD.
Nessa toada, o alcance da Geração Beat ganhou tal proporção que ser outsider virou, de
repente, mainstream. Nos EUA, o mundo do entretenimento viu a abertura de “bares beatniks”, com programações de saraus poéticos e o mesmo jazz que seus ídolos exaltavam. A TV passou a produzir esquetes cômicos baseados em estereótipos criados pela mídia: homens de óculos escuros, cavanhaque e boina, recitando poesia acompanhados por um bongô. Enquanto Allen Ginsberg lidou bem com o novo status de popstar, aproveitando sua figura pública para dar peso a movimentos de contestação, Jack Kerouac detestou a superexposição e a súbita metamorfose de sua literatura em bem de consumo.
Nos últimos anos de vida, o autor de On the Road tornou-se um recluso, rejeitando pedidos de entrevista e chutando da sua varanda os hippies curiosos, que não paravam de chegar à sua porta na esperança de trocar uma ideia com o herói da contracultura. Quem o viu depois dos 40 anos encontrou um homem deprimido, que morava com a terceira esposa e a mãe inválida, – inchado pela bebida, brigado com os antigos companheiros de aventuras, e que só saía de casa para ir ao bar do seu cunhado, onde podia beber tanto vinho barato quanto aguentasse.
Tinham ficado para trás os dias em que Jack, morto há exatos 50 anos, escreveu, pela voz de seu alter ego, Sal Paradise, os versículos de uma bíblia do jovem de alma poética e fora do sistema: “Para mim, as pessoas que importam mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e jamais dizem coisas banais, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício”.
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