COLUNA
ALEXANDRE CARVALHO
Imagine esta determinação da ONU: alguns filmes de guerra deveriam ser obrigatoriamente exibidos a qualquer governante, de qualquer país, assim que chegasse ao poder. Para que servissem como advertência a respeito do que implica iniciar uma guerra. Pois quem não consegue se sensibilizar com o sofrimento mais vasto, o desamparo mais completo, não deveria jamais decidir sobre uma violência dessa dimensão. Principalmente quando as vítimas são meninos e meninas, esses campeões de empatia.
Revelar a destruição e a morte pelos olhos de crianças não é novidade no cinema. Vêm fácil à memória produções como Império do Sol (1987), de Steven Spielberg, e o mórbido Brinquedo Proibido (1952), de René Clément. Mas este Tartarugas Podem Voar é mais próximo dos nossos tempos. E também o que mostra essa realidade da maneira mais difícil de ver sem um embrulho no estômago.
O cenário é um acampamento de refugiados curdos, na fronteira entre o Iraque e a Turquia, semanas antes da invasão americana, em 2003, que deflagraria a queda de Saddam Hussein. A paisagem é apocalíptica, com tendas montadas próximas de cemitérios de veículos militares. Tudo é carcaça e decomposição, incluindo os protagonistas: grupos de dezenas de crianças, que, lideradas pelo esperto Satélite, ganham a vida coletando minas desativadas para vender (o título é uma referência ao risco de explosão dessas minas, que têm o formato de uma carapaça de tartaruga). A atividade insalubre provoca o que mais se vê na tela: crianças sem braços, sem uma perna, mutilados que não perdem a alegria infantil por conta de suas tragédias pessoais. Uma superação que só não contagia a pré-adolescente Agrin. Resistente a toda tentativa de afeto, ela tem a obsessão de abandonar – em algum lugar ermo – o que parece, a princípio, seu irmãozinho caçula, uma criança cega de pouco mais de 1 ano.
Com o tempo descobriremos (spoiler da metade do filme) que o menino é seu filho, fruto de um estupro coletivo de soldados, na mesma noite em que seus pais foram mortos. A criança, para Agrin, é o retrato da lembrança mais dolorosa de sua vida – tão insuportável que ela não consegue manter consigo.
É até óbvio, mas em tempos de ouvidos surdos à obviedade vale lembrar: não há expansão territorial, petróleo, vantagem comercial ou mera implicância que valha cenas com essas. Um mosaico de dor que o cinema tem a grandeza de mostrar como alerta – antes que seja tarde de novo.
ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS
INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)