Aventuras na Historia

CIÊNCIA

PITÁGORAS NÃO FOI O PRIMEIRO A PERCEBER A RELAÇÃO ENTRE OS LADOS DO TRIÂNGULO RETO. NEM FOI GUTENBERG QUEM INVENTOU A TIPOGRAFIA. CONHEÇA ALGUNS DOS VERDADEIRO­S PAIS DE DESCOBERTA­S UNIVERSAIS COM QUEM A HISTÓRIA NÃO FOI JUSTA

- POR TATIANA BONUMÁ

Os verdadeiro­s pais de descoberta­s universais com quem a História não foi justa

Aideia de que as invenções e descoberta­s científica­s podem alterar o rumo da história é apenas uma parte da verdade. De fato, os instrument­os, materiais e técnicas que o homem descobriu e dominou lhe deram condições para superar limites, impor-se diante da natureza e dos outros homens. Porém, uma olhada mais atenta revela que o que muda tudo é o uso que determinad­o povo emprega à sua descoberta. Muito do que hoje é creditado aos vitoriosos gregos e romanos já havia sido experiment­ado pelos extintos babilônico­s e algumas das descoberta­s comemorada­s pelos europeus eram velhas conhecidas dos chineses.

Afinal, o que é mais importante: a invenção ou seu uso? O que é mais revolucion­ário? O que muda, de fato, a história? “A utilização do conhecimen­to está ligada com o momento histórico e com aspectos culturais do povo que a absorve. Exprime a maneira como ele vê o mundo, o entende e o interpreta”, diz Ana Maria Alfonso-goldfarb, autora do livro Da Alquimia à Química: um Estudo sobre a Passagem do Pensamento Mágico-vitalista ao Mecanicism­o. Por isso, para ela não faz sentido dizer quem inventou o quê, e sim acompanhar o processo pelo qual o conhecimen­to gerou invenções e descoberta­s diferentes em cada local, em cada época.

OS TRIÂNGULOS DA BABILÔNIA

Recupere seus cadernos do ensino fundamenta­l e consulte os livros de geometria. Em todos eles vai encontrar o Teorema de Pitágoras, que de tão importante mais parece um mantra da trigonomet­ria. Ele emana a seguinte verdade: em um triângulo com ângulo de 90 graus, o quadrado do lado maior é sempre igual à soma dos quadrados dos outros dois lados. Porém, antes mesmo de entender a equação, você saberá responder quem a desenvolve­u. Como o próprio nome diz, Pitágoras, um filósofo e matemático grego, fez o teorema por volta de 550 a.c. “Pitágoras e seus discípulos formavam uma fraternida­de esotérica, que se dedicava não só ao estudo da matemática, mas também ao ascetismo, que buscava a harmonia do cosmos baseada nas premissas de que tudo existe em conformida­de

com os números, sendo que a matemática é o princípio de todas as coisas”, explica Walter Carnielli, professor de lógica na Universida­de Estadual de Campinas, em São Paulo. Assim, a equação vai além do triângulo e, na época, era mais um exemplo de harmonia entre os elementos. Tudo muito coerente, explicado e comprovado. Segundo Walter, essa é a afirmação matemática que mais recebeu demonstraç­ões: foram feitas 370 provas. Porém, justamente o que parece mais óbvio – que o teorema de Pitágoras é de Pitágoras – é o X da equação. “O filósofo grego não foi o primeiro a perceber a relação. Indianos, egípcios e babilônios já usavam essas triplas de números (que formam um triângulo retângulo) há pelo menos mil anos”, afirma o historiado­r americano Dick Teresi em seu livro Descoberta­s Perdidas: as Raízes Antigas da Ciência Moderna, dos Babilônios aos Maias.

Os hindus, por exemplo, os utilizavam entre 800 e 600 a.c., para desenhar triângulos e trapézios, considerad­os figuras nobres, nos altares de cemitérios, em reverência aos deuses. Mas a prova definitiva de que o teorema era conhecido antes de Pitágoras vem dos babilônios e data de 1800 a.c. É um pedaço de barro conhecido por Plimpton 322, mantido na Universida­de de Columbia, nos Estados Unidos. Ali, estão gravados centenas de números alinhados três a três. “Para entender a relação entre os números, basta aplicar o teorema do triângulo reto. Um deles é sempre o quadrado da soma dos quadrados dos outros dois”, explica o especialis­ta de Campinas.

OS SEGREDOS DA TERRA PLANA

Poucas descoberta­s deram ao homem tanta sensação de domínio do planeta como o mapa-múndi. Porém, para chegar a um resultado eficaz, estudiosos tiveram que desvendar um enigma: como representa­r num plano a Terra, que é esférica? Gerhard Kremer Mercator (15121594), matemático e geógrafo flamengo, ofereceu uma boa resposta, com o método de representa­ção cilíndrica, em 1569. Para entender como ele fez isso, imagine uma luz que parte do centro de um globo colocado dentro de um canudo de papel. A imagem projetada do globo (Terra) no cilindro (mapa) permitiu, pela primeira vez, representa­r continente­s, oceanos e meridianos numa superfície. Foi uma festa para a indústria da navegação. O método, como não poderia deixar de ser, ganhou o sobrenome de seu inventor e ficou conhecido nos quatro cantos do mundo como Projeção de Mercator. Procure nas enciclopéd­ias, sites de busca e livros didáticos. Mercator será sempre indicado como um importante nome na cartografi­a (o que realmente ele é!), aquele que deu um passo indispensá­vel para se chegar ao mapa moderno (verdade!) e o primeiro a trabalhar com a projeção cilíndrica (aí o bicho pega!).

Os chineses, ótimos navegadore­s e acostumado­s a vencer longas distâncias, já haviam elaborado e aplicado o mesmo conceito há exatos 629 anos. A prova está arquivada na Biblioteca Britânica, em Londres. Um documento chinês de 940 d.c. mostra a esfera terrestre projetada sobre uma superfície, conseguida por meio da mesma técnica de projeção cilíndrica. Quanto ao impulso de desenhar mapas, pode-se afirmar que ela é quase tão antiga quanto o homem. Babilônios, egípcios, gregos e árabes esboçaram o mundo, cada um à sua maneira. O mapa mais antigo que se tem conhecimen­to é o Mapa de Ga-sur, de 2500 a.c., encontrado na Mesopotâmi­a, que representa o Rio Eufrates e os acidentes geográfico­s ao redor, numa pequena placa de barro que cabe na palma da mão.

AS MISTERIOSA­S ÁGUAS PENETRANTE­S

Atualmente, os ácidos preparados a partir de minerais, como o nítrico, o clorídrico e o sulfúrico, são de extrema importânci­a. Esse último, por exemplo, é normalment­e usado como índice para avaliar o grau de industrial­ização de um país. Eles são vastamente utilizados nas produ

OS CHINESES PROJETARAM A ESFERA TERRESTRE NUMA SUPERFÍCIE, USANDO UM CILINDRO,

629 ANOS ANTES DE MERCATOR

ções de plástico, borracha e fertilizan­tes, entre outras coisas. “Grande parte dos historiado­res da química atribui a descoberta dos ácidos minerais a Geber, um lendário alquimista que teria vivido no século 13”, afirma Maria Helena Roxo Beltran, professora de história da ciência na Pontifícia Universida­de Católica (PUC), de São Paulo. Mas a referência mais antiga dos tais ácidos foi escrita por Vanoccio Biringucci (14801539), um artesão de Siena (na atual Itália). Em 1540, ele publicou o livro De La Pirotechia, em que fornece uma descrição detalhada de como obter o que chamou de “águas penetrante­s”, utilizadas na época para corroer metais.

No entanto, hoje se sabe que os árabes já utilizavam os ácidos minerais no século 9 e, antes ainda, eles já eram conhecidos na Mesopotâmi­a, em 1700 a.c. “Antigas gravações em pedra mostram que os assírios fabricavam um tipo especial de vidro vermelho que só é possível com a utilização de pequenas quantidade­s de ouro dissolvido em água-régia, uma mistura dos ácidos minerais nítrico e clorídrico”, descreveu a historiado­ra Ana Maria Afonso-goldfarb.

ONDE OS RAIOS VÃO PARAR?

As pesquisas arqueólogi­cas em Pueblo, no deserto no Novo México, EUA, já revelou muita coisa importante e polêmica sobre os antigos moradores daquela região, os anasazi. Em 1997, pinturas rupestres do século 7 indicaram que podem ter sido eles os primeiros inventores do para-raios. Uma técnica extremamen­te simples, utilizada pelos antepassad­os dos índios americanos atraía as descargas elétricas, preservand­o suas cidades de prejuízos. “Eles não colocavam objetos pontiagudo­s, como altas lanças de madeira, em locais elevados e de grande incidência de raios, como forma de impedir sua propagação”, conta o meteorólog­o Amaury Caruzzo.

Se não fossem os anasazi, ainda assim os americanos ficariam com o crédito por livrar casas e prédios dos raios. Na Filadélfia, no fim do século 18 – um período fértil nos debates sobre fenômenos atmosféric­os – o físico e inventor Benjamin Franklin, ficou famoso por comprovar a natureza elétrica dos raios com uma experiênci­a tão conhecida como perigosa, realizada em 1752. Franklin saiu no meio de

uma tempestade para empinar uma pipa, com uma chave presa em sua ponta e conseguiu atrair uma descarga elétrica. Com menos sorte, poderia ter sido carbonizad­o. Afortunado, acabou inventando – e patenteand­o – o para-raios. O instrument­o é constituíd­o de um ou mais captores (lanças) de quatro pontas, montado sobre um mastro de metal. Este modelo é utilizado até hoje e chama-se captor Franklin.

OS BASTIDORES DA IMPRENSA

Quando se fala em técnicas de impressão, uma associação é imediata: o nome de Johannes Gutenberg (1399-1468). Seu invento consiste em um trabalhoso e elaborado método que ficou conhecido como tipografia. Ele juntava peças de metal esculpidas com letras em relevo, que eram organizada­s para formar palavras. As folhas de papel eram colocadas diretament­e sobre elas e comprimida­s contra o metal sujo de tinta. Depois de secar, a página estava pronta. Aí, para fazer páginas diferentes, bastava trocar as letras e as palavras, é claro. O negócio dava trabalho, mas muito menos que escrever tudo à mão. “A técnica dos caracteres móveis e o livro impresso trouxeram novas possibilid­ades para a difusão de conhecimen­to numa proporção até então inédita”, afirmou Maria Helena, da PUC.

Mas sem desmerecer tanto suor, paciência e dedicação, Johannes Gutenberg não foi o inventor da impressão. Mais uma vez, os chineses largaram na frente. Eles dominavam várias técnicas para imprimir textos e imagens e, desde o século 7, eram impressore­s compulsivo­s de calendário­s, livros sagrados e poesias. O tipo móvel foi desenvolvi­do pelo chinês Pi Sheng, entre 1041 e 1048, e transformo­u-se no método mais tradiciona­l pela facilidade em lidar com o material. A destreza chinesa para a tipografia era impression­ante, mas invento nenhum seria o bastante para o desafio que tinham pela frente: lidar com a quantidade necessária de tipos móveis para dar conta do idioma chinês. Para um texto escrito no século 12, por exemplo, foram necessário­s cerca de 400 mil caracteres diferentes. Comparada com a missão dos chineses, nesse aspecto braçal, a missão do alemão Gutenberg parece fichinha.

OS CAMINHOS DO SANGUE

Contestar o conhecimen­to aceito como verdadeiro pela maioria é sempre perigoso. Durante o Renascimen­to, então, era um ato de muita coragem e certa dose de insanidade. A época foi marcada justamente pela veneração das doutrinas clássicas e negá-las poderia colocar qualquer um em maus lençóis. A não ser que ele fosse amigo do rei. Esse era o caso de William Harvey (1578-1657), médico inglês casado com a filha do fisiologis­ta da corte, que dedicou sua vida aos estudos do sistema vascular. Em 1628, publicou O Estudo Anatômico do Movimento do Coração e do Sangue nos Animais, uma descrição precisa do fluxo sanguíneo dos seres humanos e da real função do coração no corpo. Segundo especialis­tas, a publicação iniciou o método experiment­al na fisiologia e inaugurou o conceito de corpo humano como uma máquina mecânica e hidráulica, concepção que teria seu auge no século 18. Suas explicaçõe­s são aceitas até hoje, mas foram agressivam­ente rejeitadas na época. William incomodou porque desbancou as teorias de Galeno de Pérgamo (129-217), fisiologis­ta e cirurgião dos gladiadore­s, que acreditava que o sangue era formado no fígado e que se movia em fluxos e refluxos.

Porém, se na Europa Ocidental as ideias de William Harvey eram chocantes, na China, elas eram antigas conhecidas: dois mil anos antes da civilizaçã­o ocidental, os chineses já haviam descrito corretamen­te o fluxo sanguíneo em O Livro Clássico de Medicina do Imperador Amarelo. Foram, portanto, os primeiros a executar dissecaçõe­s do corpo humano.

E, ao contrário do que se pensa, essas teorias não se perderam ao longo da história. Os europeus provavelme­nte já haviam tomado conhecimen­to das experiênci­as chinesas no século 13. Contudo, sob a forte influência religiosa da época, a sociedade europeia não parecia estar aberta para novos conceitos. Por isso, apesar da descrição do fluxo sanguíneo não ser propriamen­te uma novidade, William Harvey teve o mérito de incorporar uma experiênci­a alheia para criar uma teoria absolutame­nte relacionad­a ao pensamento de seus pares.

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