COLUNA
CRISTIANA BOAVENTURA
Passados mais de um século depois do lançamento de Os Sertões, imperecível e fundamental nesses últimos dias, a obra voltou à pauta na maior festa literária brasileira, a Flip: Euclides da Cunha foi o homenageado deste ano. Falar sobre Os Sertões, entretanto, é entrar em terreno perigoso já que a fortuna crítica do livro é uma das maiores do repertório da crítica literária do país. Nesse sentido, seria possível encontrar campo aberto para introduzir um discurso? Escolhi, então, um pequeno recorte para levantar uma questão.
O nosso imaginário nacional sobre a Guerra de Canudos deve-se em muito à existência dessa potência literária. Será que se Euclides não tivesse se lançado a essa empreitada teríamos hoje como pensar o horror que foi a Guerra de Canudos? Disso desdobram-se outras questões: quem detém (ou quem retém?) a narrativa oficial da História? Como se constrói um sentido para a História? E como cada indivíduo reage à brutalidade e ao horror impingido ao próprio corpo?
Na Nota Preliminar, datada de 1901, Euclides da Cunha afirma: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”. A ideia pressuposta em denunciar é a de declarar algo, incriminar, deixar que se conheça, e Euclides se empenhou nessa campanha pessoal pela lente de quem experienciou parte do que foi narrado in loco. Muitos correspondentes foram enviados à região, muitos vieses foram veiculados pela imprensa da época. Fatos, distorções dos fatos, uma guerra de narrativas estampada na imprensa do eixo Rio-são Paulo principalmente com o filtro do governo que, divulgando telegramas e cartas trocados com os combatentes, por muitas vezes notícias falsas, insistentemente tentava amalgamar o imaginário da guerra. Mas Euclides tinha um propósito: “Fui convidado em S. Paulo para estudar a região de Canudos (...) considereis que tínheis um nobre papel em tudo isso e almejo defini-lo bem perante o futuro. Consegui-lo-ei? Anima-me a intenção de ser o mais justo possível”.
Entretanto, Euclides esbarra na fragilidade da linguagem frente ao horror. Isso se revela na impossibilidade de descrever algumas imagens. Ele opta por uma narrativa ausente, um não narrar, justamente pela inenarrabilidade do horror. A interpretação é construída no silêncio do não dito. Os momentos finais de Canudos nos chegam por meio de uma narrativa ausente. “Fechemos este livro. Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.” Em alguns momentos da obra, Euclides vacila sobre a própria narrativa, interroga-se se o futuro dará autenticidade à sua História, tamanha a desumanidade dos acontecimentos: atos tão bárbaros poderiam ser entendidos no livro como ficção, uma elaboração literária, e não uma descrição da guerra? Para nossa sorte o registro épico nos chega como testemunho de um tempo que não deve ser esquecido, que não deve ser apagado.
Euclides da Cunha esbarra na fragilidade da linguagem frente ao horror da guerra e opta pelo silêncio do não dito
CRISTIANA TIRADENTES BOAVENTURA É PSICANALISTA COM MESTRADO E DOUTORADO
EM LITERATURA BRASILEIRA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO