A ÁFRICA E AS GUERRAS ESQUECIDAS
Se o conflito entre israelenses e palestinos recebe grande atenção da mídia e polariza o mundo, na África, apesar das mais de 35 guerras em andamento, acontece o contrário. O continente africano é geralmente “esquecido”, ou deixado de lado, recebendo menos atenção que a Europa ou o Oriente Médio. A motivação para esses conflitos varia, mas elementos étnicos e religiosos, além da abundância de recursos naturais e do uso de territórios como campo de batalha para o interesse de potências estrangeiras, são as razões mais comuns.
Entre as guerras atuais, três em particular chamam a atenção por ganharem constantemente novos capítulos e por exigirem análises mais complexas e interconectadas: a Segunda Guerra do Congo e a Guerra De Kivu (por terem um intervalo tão curto entre elas, são praticamente a mesma), a Guerra do Sudão (o mais recente de uma série de embates na nação africana) e os Conflitos no Sahel (iniciados na Primavera Árabe, em 2011). Embora tenham suas razões próprias, não é possível estudá-las sem tratar de dois momentos históricos: a colonização e a descolonização da África.
O imperialismo que dividiu o continente na Conferência de Berlim (1884-1885) não levou em conta a diversidade étnica e religiosa africana, traçando linhas pelo mapa, atravessando desertos e florestas onde habitavam populações multiculturais. O interesse por commodities e mão de obra barata, que pudessem abastecer os navios e as fábricas da Revolução Industrial, fez com que esses grupos fossem ignorados. As práticas e os costumes conflitantes destes coletivos que foram aglomerados nas linhas imaginadas dos mapas dos outros contribuíram para um perpétuo estado de tensão, ainda longe de ser superado.
Com a Europa cambaleante depois da Segunda Guerra veio a oportunidade de descolonização, mas os conflitos por liberdade que se espalharam das areias do Sahara, no norte, até o Desfiladeiro do Rio Blyde, na ponta oposta do continente, duraram mais 50 anos. Em meio ao processo de libertação vieram novos interesses, pois a África também foi tomada pela dualidade do mundo bipolar. Temendo que as nações que aspiravam independência aderissem ao socialismo e entrassem para a zona de influência da URSS, os EUA passaram a financiar os colonizadores que saíam. Na África, a Guerra Fria foi bem quente.
Muitos países não conseguiram se libertar das práticas coloniais e mergulharam em uma espiral de pobreza, corrupção e guerras civis. Este é o caso da República Democrática do Congo (RDC). Antiga colônia belga, ela convive desde sua independência, em 1960, com um vai e vem de guerras e acordos de paz.
A ONU está presente desde a Crise do Congo (1960-1966), com destaque na Insurgência em Katanga (1963), onde os capacetes azuis – como são chamados os soldados a serviço da Organização, por conta das cores de seus
casquetes – viram pesados combates. O país se estabilizou tempos depois, mas não como uma democracia, e sim como uma ditadura liderada por Mobutu Sese Seko. Mudando o nome RDC para Zaire, Mobutu governou até 1996, quando foi deposto por um Golpe de Estado. Durante a Guerra Fria, por se posicionar como um anticomunista, Mobutu recebeu apoio do Ocidente, mas, com a derrocada da URSS, não havia mais razão para mantê-lo.
Laurent Kabila assumiu então o poder e, com um governo fraco e ameaçado por facções rivais, outros conflitos foram surgindo, até seu assassinato em 2001 e a ascensão de seu filho Joseph. No ano seguinte, o poder foi novamente posto em xeque, pois o movimento separatista M23 declarou guerra ao governo, pleiteando a independência de Kivu do Norte.
Passados quase 20 anos e com maciço envolvimento da ONU – por meio da MONUSCO, Força de Paz atualmente comandada por um general brasileiro – e de outros países, nada indica que a situação irá mudar. Diversos acordos de paz foram assinados e descumpridos ao longo dos anos. Com o foco voltado para a Europa e o Oriente Médio, o conflito continua se arrastando.
Situação parecida com a da RDC é a do Sudão, que, desde sua independência do Reino Unido e do Egito, em 1955, já passou por quase uma dezena de conflitos internos e externos. O mais recente deles, provisoriamente chamado de Guerra do Sudão, opõe dois antigos aliados: os generais Abdel Fattah al-burhan e Mohamed Hamdan Dagalo (conhecido por Hemedti). Ambos eram líderes de uma junta militar que havia dado um golpe em 2021, pondo fim à transição democrática iniciada em 2019, com a deposição do então ditador, Omar al-bashir, que controlou o Sudão com mão de ferro por 30 anos.
Apesar de menos conhecido, os números do conflito impressionam. A ONU estima que, desde o início das hostilidades, em 15 de abril de 2023, entre 9 e 10 mil pessoas tenham sido mortas, e de 6 a 12 mil tenham sido feridas. Em 24 de outubro de 2023, mais de 4,8 milhões estavam deslocadas internamente e mais de 1,3 milhão havia fugido do país como refugiados.
A situação desses sudaneses, no entanto, só não é pior que a do Sahel, a região de transição entre o deserto e a savana na África. Estimativas das Nações Unidas dão conta que a maior parte da população da região vive com menos de US$ 2 por dia, o que a torna um dos locais mais pobres do mundo. Somado aos problemas étnicos, a região também sofre com a escassez de água em grande parte do território. Os refugiados que deixam o Sahel todos os anos são contados não aos milhares, mas aos milhões, e tem como principal destino a Europa, onde
O IMPERIALISMO QUE DIVIDIU A ÁFRICA NO SÉCULO 19 NÃO LEVOU EM CONTA A DIVERSIDADE ÉTNICA
E RELIGIOSA DO CONTINENTE
buscam melhores condições de vida.
A situação, que já era ruim no início dos anos 2000, piorou com a Primavera Árabe (2011), pois o vácuo de poder levou à ascensão de grupos terroristas e insurgentes, como a Al-qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI) e o Boko Haram, que se aproveitaram da instabilidade e da pobreza para lançar ataques contra governos e civis. Mali, Níger e Burkina Faso, por exemplo, convivem com a ameaça constante de grupos jihadistas e atentados contra o governo oficial.
Mais recentemente um novo capítulo: a região tem passado por uma série de Golpes de Estado (como o do Níger, em julho de 2023). Apesar de distante da Rússia e da China, o apelo que possuem estes dois países, protagonistas da transição para uma ordem multipolar, tem chamado a atenção dos tomadores de decisão ocidentais. Como a maior parte das nações do Sahel é de antigas colônias europeias, muitas populações veem Moscou e Pequim como alternativa atual. Aproveitando-se desse sentimento, alguns militares se revoltam e assumem o poder.
As Nações Unidas têm participado ativamente na resolução dos conflitos. Em 2013, a ONU enviou uma Missão de Paz, a MINUSMA, e tem feito esforços para mediar um acordo de paz entre os governos da região e os grupos terroristas e insurgentes. Em 2015, a Organização ajudou a mediar o Acordo de Paz de Argel, assinado pelo governo do Mali e o AQMI, mas violado várias vezes ao longo do tempo.
Ainda que demorem a dar certo e que representem episódios trágicos da história humana, esses tratados ajudam a manter a chama da esperança acesa. Junto às interferências externas pela paz, a mediação da União Africana (UA) se soma a pequenos esforços locais, mas cada vez maiores, por soluções para tantos problemas.
SEM CONSEGUIR SE LIBERTAR DAS PRÁTICAS COLONIAIS, MUITOS PAÍSES CAÍRAM NA POBREZA, CORRUPÇÃO E GUERRAS CIVIS