Aventuras na Historia

HERANCAS DA GUERRA FRIA

-

Se até nos conflitos africanos contemporâ­neos é possível ver as marcas deixadas pela Guerra Fria, nos dois principais em andamento na Europa, a herança da disputa bipolar é inegável. Tanto na Guerra do Alto Carabaque quanto no Conflito Russo-ucraniano, o motivo principal são as disputas mal resolvidas advindas da melancólic­a derrocada da URSS.

Como descrito, em 2005, pelo próprio presidente russo, Vladimir Putin, “a maior catástrofe geopolític­a do século 20 foi o fim abrupto da União Soviética”. À parte das intenções do dignatário ao dizer isso, fato é que a dissolução do “Império Vermelho” não apenas deixou um vácuo de poder na Europa Oriental e na Ásia Central, como são essas contendas mal resolvidas que motivam as guerras europeias atuais.

Apesar do susto mundial quando os blindados russos rolaram pela Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 e da dimensão do conflito, este não foi o primeiro a acontecer na Europa após a Segunda Guerra. Além dos oriundos da dissolução da Ioguslávia nos anos 1990 e 2000, o conflito em Nagorno Karabakh precede o próprio fim da União Soviética.

Em 1988, meses antes da queda do Muro de Berlim – mas já no apagar das luzes da Era Soviética –, os armênios da região começaram a protestar contra a discrimina­ção que sofriam do governo azerbaijan­o. Os protestos levaram a uma guerra armada entre armênios e azerbaijan­os, que durou até 1994, terminando com um cessar-fogo e com Nagorno-karabakh sob controle armênio – mas não sem forte oposição do Azerbaijão, mantendo uma tensão permanente entre os dois países.

Em 2020, enquanto o mundo combatia o vírus da COVID-19, o conflito de Nagorno-karabakh ressurgiu. Aproveitan­do-se justamente das atenções voltadas à situação sanitária, o Azerbaijão lançou uma ofensiva militar contra a região, que durou seis semanas. Ao vencer, o Azerbaijão recuperou o controle de grande parte do que chamam de “província rebelde”.

Durante o conflito, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 2388, condenando o aumento da violência e pedindo a todas as partes que cessassem as hostilidad­es. Após a guerra, Azerbaijão e Armênia assinaram um acordo de paz que previa a retirada das tropas armênias de Nagorno-karabakh. Foi assinada então outra Resolução, a 2389, que exigia o cumpriment­o do acordo assinado. A Rússia, herdeira maior da União Soviética, interveio como força de paz, garantindo que o cessar-fogo fosse cumprido.

Neste ano (2023), em meio a tantos focos de tensão pelo globo, uma nova disputa começou. Em movimentos rápidos e sincroniza­dos, o Azerbaijão obteve em 48 horas uma série de vitórias, pondo fim a um confronto de mais de 30 anos. O último bastião de resistênci­a armênia, a República de Artsaque (a autoridade separatist­a de Nagorno-karabakh) emitiu um decreto oficial determinan­do a dissolução de todas as suas instituiçõ­es estatais até 1º de janeiro de 2024, encerrando oficialmen­te sua existência.

A vitória sobre a República de Artsaque causou pânico nos armênios da região também pela história: apesar de ter ocorrido há mais de cem anos, o genocídio armênio pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial permanece vivo na memória do povo. Com a anexação definitiva do Alto Carabaque, há o temor que uma nova perseguiçã­o de armênios se inicie. Apesar das circunstân­cias, esta parece ser a única guerra atual com um fim no horizonte.

Em contrapart­ida, a outra herança da Guerra Fria, o Conflito Russo-ucraniano, está longe de terminar. A beligerânc­ia, a maior na Europa desde 1945, é uma “guerra de escala” onde, assim como na Segunda Guerra, o vencedor será o mais resiliente. Com consumo diário de mais de 40 mil projéteis de munição – algo que vem drenando os estoques do mundo –, o embate entre Rússia e Ucrânia é o

prelúdio de uma Nova Era.

Quando, do fim da União Soviética, o socialismo saiu derrotado, a “ideologia do século” (como chamou o historiado­r inglês, Eric Hobsbawn) viu sua despedida no Natal de 1991 – no entanto, a Rússia não foi batida. Ela pode até ter se reorientad­o para uma economia de mercado e enfrentado crises políticas, econômicas e sociais nos anos 1990, mas nunca foi derrotada no campo de batalha. A Rússia não apenas manteve intactos seus arsenais nucleares – inclusive recuperand­o os que ficaram na Ucrânia, entre outras ex-repúblicas Soviéticas – como também manteve a maior parte do inventário militar do Exército Vermelho. Certamente são esses arsenais, somados a equipament­os modernos, que permitem os embates épicos do atual conflito (ler quadro da página 39).

Com a tão divulgada contraofen­siva ucraniana, aguardada pelo Ocidente como o momento de virada no conflito, não tendo atingido os objetivos desejados e com as negociaçõe­s (bilaterais e multilater­ais) em compasso de espera, a solução deve vir mesmo do campo de batalha, onde a Rússia, com todas as perdas, leva a vantagem.

Além disso, as sanções contra a economia russa não surtiram o efeito que muitos esperavam, enquanto a Ucrânia segue em estado total de “economia de guerra”. Apesar do pouco avanço diplomátic­o, não faltam nações dispostas a mediar a paz. Além da Suíça, China e alguns países europeus, o próprio Brasil já ofereceu apoio. Mas talvez o mais surpreende­nte seja a “ajuda divina”: o Vaticano, por meio do papa Francisco, é um dos mais efusivos emissários da paz nesta região.

 ?? ?? Armênia e Azerbaijão disputam Nagornokar­abakh, região reconhecid­a como parte do Azerbaijão, mas controlada por armênios desde um cessar-fogo de 1994
Armênia e Azerbaijão disputam Nagornokar­abakh, região reconhecid­a como parte do Azerbaijão, mas controlada por armênios desde um cessar-fogo de 1994
 ?? ??
 ?? ?? Roman Hryshak, sargento das Forças Armadas da Ucrânia, é o primeiro militar do país premiado na guerra em grande escala
Roman Hryshak, sargento das Forças Armadas da Ucrânia, é o primeiro militar do país premiado na guerra em grande escala

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil