Aventuras na Historia

OS ENIGMAS DE ÍMOLA

-

No horário da Itália, eram 13h27 do dia 1º de maio de 1994, quando Ayrton surgiu dos fundos do boxe da Williams, macacão amarrado à cintura, pronto para entrar no carro e seguir para o grid de largada. Como fazia em todas as corridas, o cinegrafis­ta Armand Deus, da TV Globo, apertou o botão de sua câmera Betacam e começou a captar as imagens. Procedimen­to de rotina. Não era uma transmissã­o ao vivo.

As imagens seriam usadas para ilustrar a reportagem sobre a corrida que o correspond­ente Roberto Cabrini editaria no final do dia, a tempo de ser gerada para o Rio de Janeiro e exibida no programa Fantástico.

Não era um domingo de sorrisos para ninguém no autódromo de Ímola. Menos ainda para Ayrton, que havia anos já assombrava mecânicos, engenheiro­s, jornalista­s e namoradas com sua capacidade de se concentrar nos momentos que antecediam a largada, tornando todos à sua volta rigorosame­nte invisíveis e inaudíveis.

Seu olhar, naquelas ocasiões, parecia estar em outra dimensão. Sua seriedade formava uma muralha da qual poucas pessoas ousavam se aproximar, não importando a patente familiar ou a relação contratual.

Para alguns, naqueles momentos, ele antecipava curvas e movimentos dos adversário­s. Para outros, rezava. Outros ainda achavam que aquela era uma travessia sensorial para um mundo cheio de fúria que só cabia e existia no cockpit. Uma travessia sem volta até que a corrida, a dele, terminasse.

A câmera do cinegrafis­ta Armand Deus continuava gravando quando Ayrton Senna se aproximou da parte traseira de sua Williams e pousou as mãos sobre o aerofólio. Ele teve uma rápida conversa sobre a suspensão traseira com o engenheiro David Brown. Depois, seu olhar passou a se alternar entre o nada e a Williams, ainda suspensa nos cavaletes, sem as rodas, recebendo os últimos ajustes dos mecânicos.

Era mais do que a concentraç­ão de sempre. Havia uma contida inquietaçã­o. E também uma tristeza solene e impotente. Estavam ausentes, no seu semblante, como desde o início daquele ano, a intensidad­e e aquele olhar de predador dos tempos da Lotus e da Mclaren. Nem mesmo o rápido comentário de Patrick Head, o diretor da Williams, pareceu diminuir a distância que o piloto mantinha de tudo que o rodeava.

Algum pensamento finalmente o resgatou daquela estranha dispersão para o ritual do cockpit: balaclava, capacete, macacão fechado até o pescoço e uma espera disciplina­da, de pé, com as mãos cruzadas sobre a cintura, pela ordem de entrar no carro e ajustar o cinto de segurança.

As imagens gravadas por Armand Deus no boxe da Williams e, minutos depois, as que foram feitas no grid de largada, quando Ayrton mudou a rotina e tirou o capacete, se tornaram históricas. Deflagrara­m o sofrido exercício ao qual milhões de pessoas, espe

Era mais do que a concentraç­ão de sempre. Havia uma contida inquietaçã­o e também uma tristeza solene

cialmente os brasileiro­s, se entregaram nos dias seguintes: o que estava por trás daqueles últimos olhares, gestos e silêncios? Havia muitas respostas possíveis, sozinhas ou combinadas. Dentro e fora da pista.

Schumacher estava ali, quase ao lado, mais do que nunca disposto a destroná-lo. Roland Ratzenberg­er morrera depois de uma batida centenas de metros à sua frente, no dia anterior, e o fizera, pelo menos por algumas horas, desistir de correr. Rubens Barrichell­o, que ele vinha tratando como uma espécie de irmão mais novo das pistas, sobreviver­a a um acidente assustador, na sexta-feira. Aquela Williams que ele chamava de “cadeira elétrica”, um carro arisco e difícil de guiar, estava consumindo pneus com preocupant­e rapidez. E, na noite anterior, ele tinha ouvido uma gravação. Uma conversa de Adriane Galisteu com um antigo namorado.

A placa de um minuto foi erguida. Vinte e cinco motores de Fórmula 1 começaram a rugir. Ayrton Senna, na hora de acelerar, costumava deixar todas as preocupaçõ­es de lado. Não trocava as emoções do cockpit por nada da vida. Em mais alguns segundos, ele se entregaria de novo à aventura que tinha começado aos 4 anos de idade, ao soar de um motor de picadeira de cana, com três cavalos de potência.

 ?? ERNESTO RODRIGUES É JORNALISTA E AUTOR DO LIVRO AYRTON – O HERÓI REVELADO, LANÇADO UMA DÉCADA APÓS A MORTE DO PILOTO E ATUALIZADO PARA NOVO LANÇAMENTO (EDITORA TORDESILHA­S) ?? O que estava por trás daqueles últimos olhares, gestos e silêncios? Havia muitas respostas possíveis, sozinhas
ou combinadas. Dentro e fora da pista
ERNESTO RODRIGUES É JORNALISTA E AUTOR DO LIVRO AYRTON – O HERÓI REVELADO, LANÇADO UMA DÉCADA APÓS A MORTE DO PILOTO E ATUALIZADO PARA NOVO LANÇAMENTO (EDITORA TORDESILHA­S) O que estava por trás daqueles últimos olhares, gestos e silêncios? Havia muitas respostas possíveis, sozinhas ou combinadas. Dentro e fora da pista

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil