MURCIÉLAGO NO GELO
Testamos a tração nas quatro rodas do “morcego”
Já se passaram três horas desde que apontamos o nariz de nossa Tango Lambo para fora de Milão rumo à pequena cidade de Tirano, logo ao sul da fronteira com a Suíça, e iniciamos nossa aventura alpina. Quando chegamos ao posto fronteiriço, parece que a diversão irá acabar antes mesmo de começar. Estamos indo para a passagem Bernina, a 2.344 metros no alto dos Alpes. Primeiro, porém, temos de ter passar pela polícia da fronteira suíça, que aparentemente não tem senso de humor.
Começo a me perguntar se eles irão permitir a entrada da Lamborghini. Os passaportes e documentos do carro são entregues. Enquanto estou ensaiando minha explicação para o porquê de eu estar em um Murciélago laranja, que não é meu, e prestes a subir uma montanha suíça coberta de neve, um policial de cara fechada marcha até o carro e ordena que eu o desligue. Isso, eu não posso deixar de pensar, é um mau sinal. Eu acho que é seguro dizer que eles não são fãs de Lamborghini. Nos poucos minutos que fiquei parado com o carro ligado, o Murciélago deve ter lançado mais poluição na Suíça do que os residentes estão autorizados a fazer durante a vida toda.
Incluindo a poluição sonora. O V12 de 6,2 litros não é exatamente tímido. Gire a chave por completo e o motor de arranque grita por alguns segundos antes que o V12 entre em erupção fazendo um barulho que é como se você tivesse deixado um tijolo no acelerador, atingindo 2.500 rpm em instantes antes de voltar ao ponto morto. Sutil ele não é.
A polícia finalmente sucumbe aos apelos de Moreno Conti (um dos pilotos de testes da Lamborghini e meu companheiro nestes três dias) e nós somos autorizados a continuar. Primeiro, porém, eles nos dão um sermão sobre as condições do gelo a ser encontrado lá na frente, antes de virar para o nosso brilhante Murciélago laranja e rir.
Estamos indo até a passagem agora, em direção a St. Moritz. Embora houvesse apenas uma estrada escorregadia se escondendo na sombra das árvores quando passamos pela fronteira, estamos agora acima da linha das árvores e há neve suficiente aqui para paralisar o Reino Unido por meses. Tem nevado tanto recentemente que eles estão tendo de fazer a medição em metros (mais tarde descobrimos que há 2,5 metros de neve no topo da passagem, o suficiente para impedir o acesso à maioria das aldeias num raio de quilômetros).
Dentro da cabine aconchegante do Murciélago há um silêncio sinistro entre Moreno e eu. O problema é que há 570 bhp atrás de mim, mas agora devem estar sobrando pelo menos uns 500 cavalos enquanto eu tento desesperadamente manter as rotações baixas conforme as rodas giram sem esforço na neve e no gelo. Com os sinalizadores nos guiando pelo campo de neve, sei que a última coisa que devemos fazer é perder o impulso, mas, mesmo com uma pisada leve no acelerador, a Lamborghini está
derrapando para fora das curvas ao entrar nas retas curtas, os pneus farejando qualquer aderência disponível.
Uma mistura viciante de medo e agressividade está tomando conta do meu corpo. A última vez que havia me sentido assim havia sido durante minha primeira corrida, muitos anos atrás. Lá fora, as condições pioram, com a passagem estreita desaparecendo sob a neve.
Está tão bonito lá fora que decidimos parar em um acostamento inexistente. Em parte para admirar a vista, mas principalmente para fazer xixi. O leitor no painel indica uma temperatura externa de -9 oc, mas não há vento e o sol está brilhando, então não é preciso usar casacos. O que precisamos, porém, é de cravas em nossos sapatos. Ambos caímos em poucos segundos. Parecendo dois bêbados, nós rimos sem parar ao circundar a Lamborghini, segurando-a com as duas mãos numa tentativa de ficar em pé. Está tão escorregadio aqui que não faço ideia como os pneus estão encontrando aderência.
Duas vans 4x4 aparecem atrás de nós, os primeiros veículos que vemos desde que começamos a passagem. Elas passam com correntes de neve nas quatro rodas, seus motoristas completa e compreensivelmente espantados com a visão do Murciélago. É como se um OVNI tivesse pousado na neve, tamanha a incongruência da cena.
A Lamborghini não pensou duas vezes quando solicitei um Murciélago para a nossa viagem pouco convencional. Ele tem tração nas quatro rodas, é claro, com um acoplamento viscoso central que direciona 25 por cento da potência para as rodas dianteiras quando as traseiras começam a patinar, mas “nosso” carro também veio equipado com um conjunto de pneus para neve Pirelli feitos à mão. Não são pneus de neve comuns, mas feitos exclusivamente para a Lamborghini e nos tamanhos padrão do Murciélago, ou seja, 245/35 x 18 na frente e 335/30 x 18 para as rodas traseiras. Quando as coisas ficam particularmente complicadas, eu tenho um botão no console central para levantar a suspensão dianteira em 50 milímetros e aumentar a distância ao solo.
E não há como fugir disso. Ainda estamos no limite do que é “possível fazer” num Murciélago. Embora diga-se que a Lamborghini é um bom veículo para todos os terrenos e todos os climas, esta não é.
À medida que descemos do topo em direção a St. Moritz, sou tentado a fazer um desvio para a
‘É como se um OVNI tivesse pousado na neve, tamanha a incongruência da cena’
‘As palavras realmente não fazem jus às recompensas obtidas ao fazer um motor V12 de 6,2 litros rodar até a linha vermelha’
Pista Cresta, o que parece uma coisa apropriada a fazer, mas não conseguimos entender o mapa e o tempo é curto. Ainda assim, o dia foi bom. Amanhã vamos nos encontrar com o fotógrafo Charlie Magee e seu carro alugado nos Alpes franceses, a uns 200 quilômetros de distância. O plano é encontrar a passagem Col de la Bonette, oficialmente a mais alta dos Alpes, embora os franceses tenham adicionado uma volta inútil ao topo da passagem para ficar com o título que seria da passagem Stelvio, na Itália.
Primeiro temos que voltar ao sul e enfrentar a hora do rush ao redor de Milão. Estou feliz por deixar Moreno assumir o volante. Milão tem um tráfego bastante complicado. Milhares de italianos lutam por uma posição ao longo de quatro pistas entupidas. Depois de quase uma hora e meia, finalmente atravessamos o tráfego e nos dirigimos para Turim.
Moreno é piloto de testes da Lamborghini há mais de 20 anos. Ele adota uma posição de condução descontraída, estilo piloto de kart, com o minúsculo volante muito próximo, as pernas dobradas, o assento quase na vertical. Ele parece que está prestes a começar uma corrida, e de certa forma está. À medida que entramos na estrada, ele passa a me dar uma masterclass sobre os pontos mais delicados da condução em uma estrada italiana.
Nada pode ficar no caminho da Lamborghini. Se algum carro passa pela pista da esquerda, o Murciélago logo vai atrás dele até que pareça que a nossa placa dianteira está tocando seu escapamento. Da minha posição super baixa no banco de passageiro, eu concebo uma tabela baseada na elegância das configurações de suspensão traseira. A pior tem que ser a de uma Chrysler Grand Cherokee; se um proprietário em potencial visse como ela é parecida com a de um trator, pensaria duas vezes antes de comprar uma. Outras chocantes incluem um prolapso Honda CRV e a cru viga da Idade do Ferro de uma van Renault. No topo da tabela está um Alfa 147, com as rodas traseiras suspensas por braços triangulares de alumínio elegantes que, graças às molas relativamente macias, movemse bastante conforme o 147 passa por curvas e elevações, com a Lamborghini perseguindo cada movimento seu.
Todos os carros e caminhões que ultrapassamos recebem uma dose dupla de faróis de xênon para alertar sobre nossa aproximação. Os pneus para neve limitam nossa velocidade a pouco mais de 200 km/h, mas mesmo assim não leva muito tempo para chegarmos ao nosso hotel, situado em Pinerolo, a uns 50 km de Turim.
Depois de uma cama sombria em um hotel igualmente sombrio, a única característica redentora de Pinerolo acaba por ser a excelente lavagem de carro manual na saída da cidade. Quatro rapazes começam a trabalhar no tempo gelado e, depois de um expresso e 6,5 euros mais pobres, voltamos à estrada para Cuneo.
Estou de volta ao volante e encontro a caixa de velocidades obstruída pelo frio. A baixa temperatura transformou o óleo em melaço e inutilizou o synchromesh, então selecionar a segunda requer um empurrão forte. Depois de aquecido, porém, o Murciélago atravessa filas de caminhões enquanto viajamos pela B589 até o nosso ponto de encontro com Charlie. Ele simplesmente voa por essa parte da Itália, e a estrada é uma mistura de longas retas e curvas acentuadas, pontuadas por cidades facilmente esquecíveis. Logo estamos cruzando a ponte alta acima do rio Gesso e nos dirigindo para a primeira passagem do dia, o Col de Larche, a 1.948 metros de altura.
Livre de trânsito, a estrada contorna o lado do vale conforme sobe em direção ao cume. Depois de um caminho relativamente tranquilo, a estrada começa a torcer por entre as árvores, e há muitas curvas em U até o fim da escalada. São estradas magníficas para exercitar a
‘É muito mais agradável interagir com uma mudança mecânica do que com uma que parece o controle de um Playstation’
Lamborghini, e me impressiona o quanto a dirigibilidade melhorou desde os primeiros dias do Diablo. O controle de tração pode ser um incômodo, porém, sendo muito facilmente perturbado por saliências na estrada e cortando a potência a seco. Ele permanece desligado o tempo todo após esta subida.
Passamos por Larche, que hoje está cheia de esquiadores. Fico imaginando o que eles estão pensando da Lamborghini que passa esmagando a neve. Precisamos chegar a Jausiers, o início de Col de la Bonette. Conforme descemos o vale, a neve desaparece rapidamente da estrada. Estamos no lado sul da montanha agora, então o calor do sol é mais forte do que antes. A paisagem aqui não é tão dramática, mas as estradas são boas e, com poucas indústrias nesta região da França, há menos caminhões do que encontramos ontem.
Estou começando a gostar muito do cockpit do Murciélago. Há uma sensação de robustez em todos os principais controles. O volante é do tamanho do VX220 e precisa de esforço para ser movido de lado a lado. O mesmo acontece com a alavanca de velocidades, uma barra de liga muito bem trabalhada que aquece conforme você dirige – e a temperatura depende de quanto você está exigindo do motor. Felizmente, a embreagem tem um peso mais gerenciável. Há muitas mudanças de marchas nessas estradas e a pesada embreagem do velho Diablo teria se tornado muito tediosa. Os freios também parecem perfeitamente ponderados, resmungando um pouco das altas velocidades, mas sempre fazendo o serviço, com o pedal no lugar perfeito. O único defeito é uma peça de acabamento ao redor da articulação do pedal do acelerador que fica no caminho durante esses momentos fugazes de aceleração máxima, como se alguns destroços da cabine ficassem entalados debaixo do pedal. Pelo menos a intrusiva vibração do motor que afligia os primeiros Murciélagos foi curada.
Por fim, encontramos o início da passagem, que está coberta de neve. Há uma série de curvas em U atravessando os chalés antes de a estrada se abrir. É um começo muito inocente para o que é, em termos de altura, a mais alta das passagens alpinas. E então, depois de alguns quilômetros, viramos à direita e encontramos o caminho fechado por uma barreira de metal que bloqueia toda a estrada. A superfície além parece perfeita, mas as autoridades francesas não querem que a gente continue. Talvez os suíços tenham uma disposição maior para deixar o risco por conta do motorista. Seja como for, esta é uma passagem que vamos deixar para outro dia.
Tentamos a Col de Vars, a 2.109 metros de altura, recomendada pelos motociclistas que vêm aqui, mas há apenas manchas esporádicas de neve sobre ela hoje. Dirigir sobre estradas cobertas de neve é o objetivo desta viagem, e estradas cobertas de neve é o que queremos. O fotógrafo Magee está começando a parecer um pouco ansioso. Eu paro ao lado das motos de neve enquanto lemos o mapa. Embora existam estradas fantásticas por aqui, concluímos que poucas estarão cobertas de neve hoje. Parece estranho deixar uma área tão adorável, especialmente depois de descer uma pequena estrada de montanha até uma pista de crosscountry nas proximidades de Chianale, mas decidimos que é melhor levantar acampamento e voltar para as estradas gloriosamente nevadas de ontem.
Ao sairmos, eu vejo Moreno se aproximar e entrar no cockpit da Lamborghini. É como assistir a uma rotina de dança ensaiada: ele se coloca em linha reta em relação à porta, senta e puxa as pernas para dentro em um movimento contínuo. Como é que os italianos têm esse senso inato de estilo em tudo o que fazem? Minha tentativa de manobra ou termina comigo errando o assento e terminando empoleirado na soleira coberta de neve lamacenta ou com o cinto de segurança do lado de fora.
Na manhã seguinte, depois de uma noite confortável no Lecco, em Lago Como, nos dirigimos para Chiavenna e a passagem Splugenpass, a 2.113 metros de altura. A viagem começa suave conforme ela contorna o vale mais baixo e passa sobre muitos rios, mas logo você chega no mais extraordinário conjunto de curvas em U que conheço. Elas não são realmente adequadas para o Murciélago - algumas são tão apertadas que não resta
nada a não ser rodar em marcha à ré - mas elas parecem tão incríveis que nós tentamos. É como se toda a estrada tivesse caído pela encosta da montanha e terminado neste monte de asfalto.
Há túneis também, alguns tão estreitos que a Lamborghini se espreme para passar (a margem limitada é um problema menor). Atrás de nós vem um Citroën C5 Estate dirigido por um italiano que tinha parado mais cedo para dar uma olhada mais de perto no Murciélago. A Lamborghini tinha desenvolvido sua única falha na viagem 1.850 quilômetros quando os limpadores de para-brisa quebraram depois de eu ter tentado limpar o vidro quando eles ainda estavam congelados. O reparo teria sido fácil se não tivesse sido tão difícil encontrar o fusível que havia sido queimado.
Mas como os italianos amam seus supercarros! O homem no C5 cancelou o compromisso que tinha para que pudesse nos guiar pela próxima hora ou mais, já com os limpadores de parabrisa arrumados, até a montanha. Mais tarde, enquanto eu estou fazendo algumas passagens para a câmera em uma vila remota, os alunos e professores da pequena escola da aldeia suspendem as aulas e saem correndo para ver nosso carro passar. Na Itália, o amor por automóveis é muito profundo.
Com as fotos prontas, continuamos nossa subida, passando por uma sucessão de túneis parcialmente fechados que se abrem em bancos de neve de mais de dois metros de altura. É um momento emocionante.
Nestas condições, a Lamborghini sempre se comporta como se fosse de tração traseira ao invés de nas quatro rodas. Uma pisada no acelerador faz a cauda se mover, mas esse tipo de indulgência precisa de um planejamento cuidadoso - sobre a superfície congelada, não há nada no que se agarrar caso você tente adicionar potência extra para escorregar da curva para a reta. Se eu soubesse que o caminho à frente estava limpo, poderia ser mais ousado, mas as consequências de estar errado seriam embaraçosas demais para explicar.
Perto do topo da passagem, olhamos para baixo e vemos um lago congelado preso atrás de uma represa, com motos de neve correndo por toda a superfície. Eu adoraria ter me juntado a eles nessa superfície de gelo coberta de neve, mas não conseguimos encontrar uma maneira de descer. Não importa. Nós temos uma Lamborghini e uma estrada deserta. Charlie está muito mais feliz agora que estamos de volta a esse ambiente repleto de neve.
Depois de três dias de mudanças de marcha constantes e subidas rápidas e curtas até algumas das estradas mais desafiantes já criadas, estou exausto e exultante.
Esses três dias me fizeram lembrar o quanto o Murciélago é especial. Luc Donckerwolke criou um clássico instantâneo com este carro.
Depois de três dias no Murciélago, posso até ter me tornado um piloto melhor. Tirar e colocar o pé no acelerador é fácil e agradável quando você consegue fazer isso direito, a mudança de marchas requer firmeza e precisão, mas é muito mais agradável interagir com uma mudança mecânica do que com uma que parece o controle de um Playstation.
Depois, há o ruído. As palavras realmente não fazem jus às recompensas sônicas obtidas ao fazer um motor V12 de 6,2 litros rodar até a linha vermelha.