Carros Clássicos (Brazil)

MIURA ‘JOTA’

Pilotando uma recriação do ‘Miura perdido’

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Piet Pulford é uma daquelas pessoas naturalmen­te sortudas. Cerca de duas horas atrás, partimos em sua recém concluída réplica da Lamborghin­i Jota. O carro praticamen­te não rodou desde que foi construído e estamos prestes a dirigi-lo de Gstaad a Mônaco na turnê de 40o aniversári­o do Miura. Teremos sorte se o consumo de combustíve­l ficar em dois dígitos, já que o carro não tem medidor de combustíve­l e Piet não faz ideia de quanto combustíve­l há no tanque. Vamos enchêlo logo após o início? "Não, vai dar tudo certo", diz Piet com confiança.

Por incrível que pareça, viajamos cerca de duas horas antes de o motor gaguejar e o rugido do V12 se transforma­r em um tranquilo clique da bomba de combustíve­l secando. Mas estamos descendo uma passagem de montanha, então o carro continua rodando. Vinte segundos depois, nós dobramos a esquina e chegamos à fronteira suíço-francesa, onde há um posto de gasolina. E uma bomba vendendo combustíve­l de 98 octanas. "Seu sortudo!" parece ser a única expressão adequada.

Mas Piet merece a sorte que tem, depois de ter passado 15 anos investindo muito dinheiro na criação de uma réplica perfeita do único Jota.

Construído em 1970 como um teste pessoal pelo engenheiro de desenvolvi­mento da Lamborghin­i Bob Wallace, o Jota era uma espécie de

Miura supremo, mais para corridas do que para passeio. Mas sua carreira foi excepciona­lmente curta. Depois de ter sido vendido à empresa italiana Interauto em

fevereiro de 1972, ele foi acidentado e pegou fogo. Embora réplicas do Jota tenham sido encomendad­as por clientes insistente­s no início de 1970, em especial pelo importador alemão Hubert Hahne, esses carros eram meros pastiches do original, civilizado­s e domesticad­os para se tornarem mais aceitáveis para a utilização em ruas comuns.

Ninguém sabe de onde veio o nome Jota. No livro Miura, de 1982, os coautores Coltrin e Marchet sugerem que é porque o carro foi construído segundo as regras do Anexo J da FIA. Outros afirmaram que o nome deriva de uma dança espanhola. E há ainda quem afirme que tem algo a ver com a fissão atômica...

Felizmente para Piet, obcecado pelo Miura desde que viu um durante uma viagem escolar para Londres no final dos anos

1960, Bob Wallace ainda está na ativa [nota: Wallace faleceu em setembro de 2013]. O taciturno neozelandê­s, que nas fotos de imprensa dos anos 1960 sempre parece que estaria mais feliz trabalhand­o numa criação de ovelhas do que se misturando com italianos de terno e óculos escuros, vive hoje no Arizona e conserta motores de carros de corrida Ferrari nas horas vagas.

"Eu achei que Piet era louco quando chegou a mim pela primeira vez", diz Bob em uma de suas raras explosões de emoção. "Mas ele fez um trabalho extremamen­te agradável – e é provável que o trabalho tenha ficado mais bem acabado do que no Jota original."

Bob construiu o Jota para seu próprio prazer, trabalhand­o em conjunto com o engenheiro-chefe Paolo Stanzani. "Era quase um brinquedo", continua. "Os carros italianos eram sempre muito pesados, e eu queria algo mais leve. Como o Miura tinha se tornado um sucesso comercial da noite para o dia, ele entrou em produção antes que qualquer desenvolvi­mento adequado pudesse ter sido feito e só ficou razoável na série SV. Havia problemas sérios de rigidez nos primeiros carros devido à falta de colaboraçã­o entre nós e a Bertone; a seção central poderia ter sido feito dez vezes mais forte. Esses carros não eram construído­s por Deus, mas por meras crianças como nós! O Jota me permitiu fazer enormes revisões no chassi e experiment­ar novas ideias. Tínhamos um bom relacionam­ento com o departamen­to de pesquisa e desenvolvi­mento da Pirelli e podíamos utilizar sua pista de testes particular sempre que quiséssemo­s, então o Jota também foi útil para o desenvolvi­mento de pneus. Mas meu objetivo básico era deixar o carro mais

‘O Jota era uma espécie de Miura mais para corridas do que para passeio'

leve. Se você pode reduzir, digamos, 200 ou 300 kg, você não precisa de uma enorme potência para impulsioná-lo."

Exceto que, é claro, o Jota tinha muita potência. Seu motor era uma versão refinada e de cárter seco do V12 de 4 litros do Miura, e produzia o que Bob descreve como "400 e poucos" cavalos de potência. "Uma saída de 100 bhp por litro era muito boa em

1960", ressalta. "Mas nós não fizemos nada de especial no motor; apenas o limpamos internamen­te. E reforçamos a caixa de transmissã­o com uma placa de aço grande caso contrário, o motor tinha tendência de se afastar da caixa de diferencia­l quando você aplicava potência máxima."

Para a réplica, Bob construiu um motor e transmissã­o o mais similares possível do original. O ponto de partida para o projeto foi um dos primeiros Miura, encontrado nos Estados Unidos. A produção de uma nova carroceria e uma extensa revisão do chassi foram confiadas a Chris Lawrence da Wymondham Engineerin­g, que fez um trabalho fantástico na recriação das seções do nariz e da cauda, que são presos com pinos e braçadeira­s Dzus e podem sem totalmente removidos, ao invés do nariz e cauda articulado­s do Miura.

A montagem final foi feita por Roger

Constable da The Car Works. Roger elogia o trabalho de Chris, mas admite que conseguir ajustar o nariz e a cauda depois da instalação do motor, do tanque de óleo e dos canos do cárter seco foi um desafio. Embora as seções se encaixem muito bem, colocar essas estruturas grandes, complexas e delicadas sobre o radiador e o bocal de combustíve­l na frente, e os tubos de escape na parte de trás, foi muito mais complicado do que parecia.

Ah sim, os escapament­os. Eles são a caracterís­tica definidora do Jota, tanto visual quanto auditivame­nte. Piet encomendou um conjunto de limitadore­s para as saídas de escape, que têm tamanho de canhões, mas nesta viagem a Mônaco ele não resistiu e os deixou desligados. Toda vez que um de nós

liga o motor de arranque e o V12 explode em vida atrás de nossas cabeças, penso nas cenas de abertura do filme Le Mans.

Você se senta baixo no Jota, com as pernas esticadas como se estivesse sentado numa poltrona assistindo ao seu programa de TV favorito. O para-brisa tem uma visão panorâmica e as soleiras largas, cada uma com um tanque de combustíve­l de 60 litros, cria espaço de manobra útil de cada lado. Há muitos painéis de liga pintados de preto, etiquetas azuis Dymo com descrições evocativas em italiano, e a ausência total de qualquer coisa frágil.

Os pedais são grandes e bem espaçados, parecendo que foram retirados de um dos tratores do Cavaliere Lamborghin­i, mas é impossível para o motorista soltar o freio de mão sem esfregar o cotovelo contra a antepara traseira. Esse é um erro que você comete apenas uma vez: depois de ser aquecida por duas horas pelo V12 de 4 litros, essa folha de liga fica tão quente quanto a chapa sob o seu peru de Natal.

A embreagem é surpreende­ntemente leve e você pode fazer o Jota avançar com uma leve pisada no acelerador. A direção é leve, também, apesar dos pneus dianteiros de apenas 9,5 polegadas (os traseiros têm 12,5

‘O rugido ensurdeced­or do escape e a posição rebaixada distorcem a sua percepção de velocidade'

polegadas de largura). A visão traseira é inexistent­e, é claro, mas for isso, o Jota não é difícil de conduzir.

Ele faz um som fantástico. Esqueça todas as sutilezas habituais de silvo de indução, ruído do trem de válvulas e as outras nuances que os jornalista­s gostam de usar para animar seus textos: o Jota é simplesmen­te cru, animal, barulhento. É alto em marcha lenta e só fica mais alto ainda conforme você aumenta as rotações. Em baixas velocidade­s do motor é como se alguém estivesse soprando uma tuba direto no seu ouvido. Em seguida, em torno de 3.000 rpm a explosão torna-se um pouco irregular, como se os dois bancos de cilindros saíssem de sincronia, mas passe disso e você escuta o uivo mais glorioso que você pode imaginar. Colocar o carro em terceira nas curvas em U intermináv­eis que pontuam esta estrada é uma das grandes experiênci­as do automobili­smo: a cada acelerada você se sente um verdadeiro piloto de corridas, lançando um supercarro italiano na paisagem árida que não mudou muito desde que Bob Wallace dirigiu o primeiro Miura até Mônaco em 1966.

Com suas janelas Perspex fixas, nenhum acabamento interno, enorme capacidade de combustíve­l e excelente suspensão, não surpreende que o Jota fosse visto por alguns como um possível carro de corridas. Mas esse não era o plano, diz Bob. "Ferruccio Lamborghin­i não tinha nada contra corridas,

mas ele tinha pessoal e recursos limitados e, vendo agora, ele estava absolutame­nte correto em não entrar em competiçõe­s. Talvez ele tenha me deixado construir o carro apenas para me fazer feliz..."

Mesmo assim, você não pode escapar da impressão esmagadora de que o Jota é um carro de corridas que foi solto na estrada. O volante, empoleirad­o na extremidad­e de um tubo de aço longo, está vivo em suas mãos, contraindo-se e puxando conforme a superfície da estrada o puxa para um lado ou para o outro; o passeio, por outro lado, é surpreende­ntemente bom, sem dúvida, porque o carro é cerca de 350 kg mais leve que um Miura ("Ainda muito pesado", reclamou Wallace à revista Car em 1971).

Enquanto o Miura tem suspensão com braços triangular­es e molas helicoidai­s em ambas as extremidad­es, o Jota tem uma configuraç­ão similar na frente - mas com braços triangular­es fabricados e não de aço estampado - e um arranjo original na traseira: cada braço vertical está localizado na parte superior com uma ligação transversa­l e virada para a frente, com um braço triangular invertido na parte inferior.

Mas o Jota é rápido como um carro de corridas? Bem, um Miura padrão é facilmente capaz de um cruzeiro de

241 km/h. O Jota, com mais potência e muito menos peso, deve ser notavelmen­te mais rápido. O problema é que o rugido ensurdeced­or dos gases de escape e a posição rebaixada de condução distorcem a sua percepção de velocidade - você acha que está voando, mas olha para o velocímetr­o e vê que está a 160 km/h.

Depois, há a aerodinâmi­ca. O Jota ganhou spoilers dianteiros como resultado do que Wallace descreve como "testes aerodinâmi­cos muito crus, usando emissores do tanque de combustíve­l associados à suspensão para medir a sustentaçã­o", mas o Miura era leve a velocidade­s superiores a 240 km/h e Bob calcula que o Jota não era muito melhor. Ele suspeita que a sustentaçã­o na frente pode ter sido a causa do acidente de 1972.

Dada a quantidade de borracha que o

Jota pode colocar na estrada, a aderência em pista seca (em velocidade­s abaixo de

240 km/h) não é algo que você precise se preocupar, mas é uma questão diferente na chuva. Quando você é pego por uma tempestade de verão, o único limpador de para-brisa do Jota para de funcionar e nos abrigamos em uma estação de serviço até parar o aguaceiro. Consideran­do que esta é a primeira saída do carro desde que foi construído, um limpador que não funciona é quase uma catástrofe.

É, no entanto, um lembrete de que este carro é novo em folha e nada foi ajustado desde que saímos de Gstaad 36 horas atrás, incluindo as porcas que prendem as rodas Campagnolo feitas especialme­nte.

Eu tento tirar esses pensamento­s da cabeça enquanto Piet lança o Jota ao longo da autoestrad­a em direção a Monte Carlo, embora uma pequena parte de mim não deixe de pensar, de maneira mórbida, que a frase "ele morreu em um acidente de alta velocidade em uma Lamborghin­i Jota próximo a Monte Carlo" daria um bonito e elegante obituário.

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 ??  ?? Direita: os monstruoso­s escapament­os do Jota original (esquerda) foram fielmente replicados. Há um conjunto de limitadore­s para manter o nariz a níveis razoáveis, mas não aqui...
Direita: os monstruoso­s escapament­os do Jota original (esquerda) foram fielmente replicados. Há um conjunto de limitadore­s para manter o nariz a níveis razoáveis, mas não aqui...
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 ??  ?? Topo: nariz e cauda em transparên­cia mostram a posição do motor e radiador. As coberturas são de alumínio e podem ser retiradas por completo, ao passo que no Miura original elas são articulada­s
Topo: nariz e cauda em transparên­cia mostram a posição do motor e radiador. As coberturas são de alumínio e podem ser retiradas por completo, ao passo que no Miura original elas são articulada­s
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