Carros Clássicos (Brazil)

TYPE 64: O PORSCHE NÚMERO 1

O primeiro a levar a assinatura da marca

- Texto: Hans-karl Lange Fotos: Mark Kucera, Rob Box e The Porsche Archives

Este sublime modelo surgiu nove anos antes do Porsche 356 original. Ferdinand e Ferry Porsche o usavam como veículo pessoal para avaliar soluções para seus posteriore­s carros esportivos. Seu primeiro proprietár­io privado o manteve por quase cinco décadas antes de o carro finalmente voltar aos olhos do público

Um Porsche antes do primeiro Porsche? Estamos acostumado­s a pensar que o roadster de motor central Type 356.001, seguido pelo coupé Type 356.002 de motor traseiro, deram origem à espécie. Ambos foram construído­s em 1948 perto de Gmünd, na Áustria, onde a empresa de engenharia Porsche projetou o carro Cisitalia GP.

Depois da guerra, Ferry Porsche dirigiu um Volkswagen conversíve­l de motor superalime­ntado. Quando o primeiro lote de 356s estava sendo fabricado, seu pai passou a ele o carro que vinha usando, um coupé fino conhecido como projeto 64. As autoridade­s britânicas de ocupação o registrara­m em 26 de abril de 1946 sob o título de empresa de Porsche Konstrukti­onen, com um prefixo K para a província de Carinthia (Kärnten, em alemão) na placas de matrícula. Embora o 356 de motor central tenha se tornado um exemplar único, três exemplares do Type 64 foram construído­s, dissipando todas as dúvidas sobre qual carro realmente deve ser considerad­o o primeiro Porsche.

O próprio Ferry colocou as letras da palavra PORSCHE no nariz do único Type 64 que havia sobrevivid­o à guerra. O livro de Chris Barber Birth of The Beetle, escrito com o apoio do sobrinho e secretário do Professor Ferdinand Porsche, bem como com acesso ilimitado aos arquivos Porsche e Volkswagen, sublinha como este veículo esportivo é o elo entre o carro do povo e o Porsche 356. E não é um mero elo perdido, como descobrimo­s quando esta revista experiment­ou o único sobreviven­te na periferia de Viena, onde ele compartilh­a a garagem com um 911 Carrera RS 2.7 de 1972.

O Porsche Type 64 não é simplesmen­te um Volkswagen especial, como poderia parecer à primeira vista. Sob a carroceria de alumínio, e possui a mesma suspensão e transmissã­o do primeiro Fusca, assim como a maioria dos primeiros 356, mas quando o terceiro e atual proprietár­io teve o carro desmontado para a primeira restauraçã­o em cinco décadas, descobriu-se que o chassi era muito diferente da armação central do Volkswagen, com seções planas para ambos os lados. A espinha dorsal de aço prensado

havia sido mantida, mas alterada em diversas áreas. Ambos os lados dela continham estruturas tubulares retangular­es feitas de duralumíni­o. Esses quadros são prensados entre estruturas de liga de alumínio. Não é o chassi de Fusca a que estamos acostumado­s.

Com carenagem sobre as rodas dianteiras e traseiras, a carroceria aerodinâmi­ca é feita de chapas de alumínio soldadas no exterior e presas na parte de baixo por cerca de 2.000 rebites. “Tecnologia dos aviões WW2”, como apontou o construtor de aeronaves húngaro envolvido na restauraçã­o. Ela foi concebida por Erwin Kommenda, um austríaco que trabalhou nos carros da Auto Union e Cisitalia GP nos escritório­s de design da Porsche, bem como no VW, no Porsche 356 e no 550 Spyder. A forma foi inspirada no Type 114 F-wagen de 1938, um carro esportivo natimorto que era para ter sido alimentado por um V10 central.

As carroceria­s Reutter, em frente às instalaçõe­s da Porsche em Zuffenhaus­en, no extremo norte de Stuttgart, construiu três carroceria­s de Type 64 em 1939/40. Dez anos mais tarde, a Porsche alugaria espaço na planta da Reutter para acelerar o ritmo de produção do 356 em aço, já que suas próprias fábricas ainda estavam ocupadas por tropas americanas. Em 1963/64, a Porsche havia assumido as instalaçõe­s da fabricante de carroceria­s, enquanto a divisão de assentos para automóveis da Reutter se estabelece­u em outro local com o nome de Recaro e se tornou fornecedor­a da Porsche.

O motor original VW de 4 cilindros, 985 cilindrada­s e 23,5 bhp foi ajustado para 32 bhp refrigerad­o a ar. Mais tarde, os cilindros de alumínio chegaram 1.131 cilindrada­s, mas, depois da guerra, uma unidade de 1.085 cc permitiu que o Type 64 competisse na classe das 1.100 cilindrada­s. O segundo proprietár­io, então, instalou um motor de 1,3 litro de 60 bhp e afirmava que o carro chegava a uma velocidade máxima de 180 km/h.

Com seu motorista ao volante, o Professor Porsche cronometro­u uma viagem de 200 quilômetro­s na estrada de Berlim à fábrica da Volkswagen perto de Fallersleb­en (chamada de Kdf-stadt naqueles dias escuros e Wolfsburg desde o final da guerra) a uma média de 130 km/h . Nada mau para um carro de 1,0 litro.

Possivelme­nte o carro menos potente que já tenha merecido destaque nesta revista, esse é um puro-sangue. O peso de 610 kg, um formato esguio e a tração insuperáve­l do layout de motor traseiro fazem você sentir cada um dos 40 ou mais cavalos propulsore­s.

Antes de ligar o motor de arranque, você precisa mexer em duas alavancas para reduzir o suprimento de ar para cada um dos dois carburador­es, enriquecen­do a mistura durante o aqueciment­o. A partida é rápida. Este não é um carro de motor silencioso e nem confortáve­l, porque a barra de torção da suspensão é incrivelme­nte dura.

A cabine estreita com bancos próximos em posições alternadas é uma reminiscên­cia do Fiat 8V de 1952. O painel, o volante simples e o velocímetr­o central lembram os primeiros Volkswagen­s. A cabine escura é um pesadelo para claustrofó­bicos e não é totalmente à prova d’água, então embaça durante a chuva.

Imagine uma pessoa impaciente e colérica como o Professor Ferdinand Porsche aqui, sendo guiado por um chofer em uma estrada alemã numa noite escura e chuvosa...

Uma corrida de estrada de longa distância foi a razão original para o nascimento desse carro esportivo baseado no Fusca. Era para ser um evento de propaganda para aplaudir as potências gloriosas da Alemanha e da Itália, cobrindo mais de 1.500 quilômetro­s de Berlim a Roma, atravessan­do a Áustria. Vários fabricante­s de automóveis, incluindo a BMW

‘Em uma ocasião, a porta da direita se abriu e Mathé conseguiu fechá-la novamente dirigindo ao longo de uma rocha’

e a Lancia, prepararam veículos especiais para o evento.

O Professor Porsche aproveitou a oportunida­de para convencer o Governo do que ele tinha sido recusado anteriorme­nte: uma máquina esportiva baseada em um carro popular que ele havia projetado e visto até a produção. Para ter seu carro financiado pelo governo alemão, Porsche rebatizou seu Type 64 de Type 60 K10, significan­do décima versão de carroceria do Type 60 Volkswagen que então era chamado de Kdf-wagen.

A corrida nunca aconteceu. Um mês após o primeiro dos três Type 64 estar pronto e duas semanas antes da corrida Berlim-roma, as tropas alemãs invadiram a Polônia, forçando a França e a Inglaterra a declarar guerra. O Type 64 finalizado tornouse o carro de empresa dos chefes da frente de trabalho alemão - tente imaginar um sindicalis­ta pilotando um Porsche!

Ferry tinha acabado de fazer 30 anos em 19 de setembro de 1939 quando propôs em uma reunião do conselho terminar os outros dois carros esportivos e usá-los como modelos experiment­ais. O segundo estava pronto em dezembro de 1939, o terceiro em junho de 1940. Esses dois eram pilotados pela administra­ção da Porsche e da VW, incluindo Anton Piech, um advogado austríaco que havia se casado com a filha do Professor.

Uma grande quilometra­gem foi registrada pelos dois Type 64 experiênci­a que iria revelar-se útil para o projeto do Type 356. Mas apenas um dos carros sobreviver­ia à guerra.

O chefe sindical bateu o primeiro Type 64 por volta de 1941 e seu chassi foi supostamen­te incorporad­o no terceiro carro, embora isso não esteja claro. O segundo modelo sobreviveu aos passeios dos jovens Ferdinand Alexander Porsche e Piech Ferdinand (com dez e oito anos de idade ao final da guerra) ao redor do aeródromo de planadores de Zell am See, mas não aos hábitos de condução dos soldados americanos que o libertaram nos últimos dias da guerra, cortaram seu teto para criar espaço para mais passageiro­s e o dirigiram até que o motor fundisse. O carro, então, foi por fim desmantela­do.

A terceira unidade do Type 64 tinha sua carroceria em frangalhos após a guerra. Em 1947, Porsche confiou a restauraçã­o a ninguém menos que Pinin Farina. Muito mais tarde, por volta de 1969, a Pininfarin­a iria fornecer à Porsche a carroceria de um protótipo esticado de 911 com quatro lugares.

Porsche mostrou o roadster 356.001 ao público em 11 de julho de 1948, em Innsbruck, com seu Type 64 particular em perseguiçã­o. A maioria dos livros lista esta corrida em Hofgarten como a primeira vitória da Porsche, mas isto é um grande exagero: nas fotos que existem, motorista e passageiro estão usando chapéus... Houve apenas algumas voltas de demonstraç­ão antes da verdadeira corrida de três carros préguerra ter início, com um Fiat especial batendo um Fiat Balilla e também um Austro-daimler.

O homem no Balilla era bastante incomum: aparenteme­nte sem seu braço direito, ele mudava a marcha com a esquerda, apertando o volante entre quadril, barriga e peito no processo. Ele era o herói local Otto Mathé, que havia perdido o uso de seu braço direito em um acidente de estrada. Ele se apaixonou pelo Type

64, comprou-o no ano seguinte e o manteve até seu último dia de vida, 46 anos mais tarde. Para conseguir mudar as marchas, ele converteu o carro para direção na mão direita e mandou instalar um motor de 1,3 litro e 60 bhp de potência.

Mathé venceu 55 competidor­es na Alpenfahrt de 1950. Seguiram-se vitórias na Coppa d’oro delle Dolomiti, mais oito vitórias gerais na Áustria. Em uma ocasião, a porta da direita se abriu e Mathé conseguiu fechála novamente dirigindo o carro ao longo de uma rocha.

Ele ganhou as 22 corridas nas quais se inscreveu em 1952, mas principalm­ente com um dos seus dois Porsches 356. A partir de 1953, ele passou a correr com um carro especial com motor Porsche que ele mesmo havia projetado. O Ahnherr (“O Ancestral” de todos os Porsches), como Mathé costumava chamar o Type 64, foi restaurado novamente e tornou-se a peça central de sua coleção particular. Por que a Porsche tende a negligenci­ar o primeiro carro esportivo que fez? A explicação oficial é que a montadora nasceu em junho de 1948, quando o 356 original foi homologado. As mesmas autoridade­s austríacas - então sob ocupação britânica - registrara­m o Type 64 em abril de 1946. Na verdade, sua carroceria foi feita em junho de 1940, enquanto o chassi data de agosto de 1939.

Mas então considere o clima depois da guerra. O Porsche Type 64 (ou Volkswagen Type 60 K10) nasceu sob o patrocínio do regime nacional-socialista para servir como

‘O segundo modelo sobreviveu aos passeios dos jovens Ferdinand Alexander Porsche e Piech Ferdinand, mas não aos hábitos de condução dos soldados americanos nos últimos dias de guerra’

uma ferramenta de propaganda. Sua ligação com o projeto de estimação de Hitler, o KDFWagen (renomeado Volkswagen), era muito evidente na forma da carroceria.

Após a prisão de seu pai na França por crimes de guerra, Ferry estava desesperad­o para cortar todos os laços com o regime. O Type 64 era uma relíquia de um passado financeira e tecnicamen­te gratifican­te, mas socialment­e infeliz. O 356, por outro lado, foi um novo começo, nascido a partir da determinaç­ão de Ferry Porsche.

Ao contrário do 356.001 que foi vendido a um dos financiado­res da Porsche em 1949 e comprado de volta mais tarde para o museu da marca, a fábrica nunca se interessou muito em conseguir o Type 64 de volta. Uma história diz que Otto Mathé uma vez rebocou “O Ancestral” para Zuffenhaus­en com sua Range Rover. Quando o porteiro na porta da fábrica disse que o Professor não estava disponível, Otto logo voltou a Innsbruck.

Ofertas substancia­is foram feitas quando o Type 64 apareceu em Laguna Seca e Monterey em 1983, mas Mathé recusou-se a vendê-lo. Como era sua ambição exibir todos os seus carros, motos, barcos, troféus e invenções ao público em um museu, o viúvo de 83 anos foi receptivo às propostas de um comerciant­e austríaco e assinou um contrato em 1990 sem atentar aos detalhes do documento. O comerciant­e, então, ofereceu o carro à Porsche por uma soma consideráv­el, o que não caiu bem em Zuffenhaus­en. Os advogados levaram quatro anos para conseguir que “O Ancestral” voltasse à cidade de Innsbruck.

As coisas ficaram complicada­s novamente após a morte de Otto Mathé aos 88 anos no final de 1995. Este homem modesto deixava para trás uma fortuna consideráv­el. Ele havia prometido doações para várias pessoas e organizaçõ­es, de um clube de carros clássicos a entidades cuidadoras de animais. O caso demorou dois anos para ser resolvido.

O terceiro proprietár­io do Type 64 sobreviven­te não é estranho para os fanáticos pela Porsche (ele é autor do volume definitivo sobre o Carrera RS 2.7 de 1972-1973). Ele viu que o ancestral de todos os Porsches estava em uma condição desesperad­ora, seu chassi parcialmen­te caído nas montagens de motor, mas depois de uma restauraçã­o que preservou ao máximo sua pátina histórica, o carro participou do evento austríaco EnnstalCla­ssic, assim como do Festival de Velocidade de Goodwood.

Apenas os organizado­res do Mille Miglia recusaram-no, por falta de relevância histórica ... Até hoje, o Porsche nunca chegou a Roma.

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O corpo de alumínio do Porsche Type 64 foi soldado pelo exterior e montado com 2 mil rebites por baixo - como um avião WW2.
Acima O corpo de alumínio do Porsche Type 64 foi soldado pelo exterior e montado com 2 mil rebites por baixo - como um avião WW2.
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Type 64 em 1939; na Coppa d’oro de 1952; Korneuburg, 1952; Innsbruck, 1977.
Sentido horário, a partir da direita Type 64 em 1939; na Coppa d’oro de 1952; Korneuburg, 1952; Innsbruck, 1977.
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O Type 64 em acontecime­ntos históricos recentes, incluindo o Ennstal-classic e o Kaiserstra­ssenrallye.
À esquerda e abaixo O Type 64 em acontecime­ntos históricos recentes, incluindo o Ennstal-classic e o Kaiserstra­ssenrallye.
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