Carros Clássicos (Brazil)

PORSCHE 914/6

Como a estranheza ganhou credibilid­ade

- Texto: Delwyn Mallett Fotos: Andy Morgan

O 914 foi o descendent­e de dois dos melhores carros da Alemanha. Pense em um Volkswagen de enorme sucesso (mas pouco atraente) inseminado com os genes da glamorosa fabricante de esportivos Porsche.

O mundo dos carros aguardava ansiosamen­te pela chegada do novo veículo, mas, entre a concepção e o nascimento, os pais brigaram e não conseguiam nem mesmo chegar a um acordo sobre qual nome dar à sua prole. O bebê foi revelado em setembro de 1969 no Salão do Automóvel de Frankfurt, onde os gracejos da imprensa mundial silenciara­m.

A baixa receptivid­ade e o sentimento de decepção foi melhor resumido pela revista Auto Motor und Sport, que publicou nada mais do que a observação de que “o 914 não é muito bonito, mas é funcional, baixo e esportivo”. Mas o 914 era bom - basta olhar para o 914/6 GT aqui.

É fácil esquecer que a Porsche já foi um estábulo de apenas um cavalo. Entre 1948 e 1965, ela construiu o requintado, mas caro e peculiar 356, que foi substituíd­o pelo ainda nada convencion­al e quase duas vezes mais caro 911. O sempre cauteloso Ferry Porsche estava

preocupado que seus preços os colocariam fora do mercado.

A Volksvagen e a Porsche eram, naturalmen­te, mais do que primos se beijando.

O pai de Ferry Porsche, o Professor Ferdinand Porsche, tinha projetado o Fusca, e a criação de Ferry, o 356, tinha evoluído a partir dele após a Segunda Guerra Mundial. A sobrevivên­cia da Porsche no difícil período pós-guerra foi certamente ajudada pelos royalties recebidos por cada Fusca vendido.

Mais uma vez, surgiu uma oportunida­de da qual ambas as empresas poderiam se beneficiar. A Porsche precisava de um modelo de nível de entrada mais barato para aumentar o volume, enquanto a VW queria saber não só como substituir o Fusca, que envelhecia, mas como adicionar um pouco de tempero à imagem da empresa. A VW estava bem avançada no desenvolvi­mento do 411 quando o chefe Heinz Nordhoff e Ferry Porsche se reuniram para discutir uma joint venture.

Em meados dos anos 1960, o carro esportivo de motor central, já bem estabeleci­do na pista, foi se tornando a escolha “quente” para a estrada. Porsche sempre foi um defensor da configuraç­ão de motor central: o primeiro Porsche havia sido um roadster de motor central e cada carro de corrida construído com esse propósito tinha o motor à frente das rodas traseiras. O lindo 904 de 1964 poderia ter, e provavelme­nte deveria ter, fornecido o estilo para um novo carro de estrada, mas as exigências dos dois parceiros de marketing ditaram que o novo carro deveria parecer diferente de tudo que já havia sido feito por ambas as empresas. Nesse quesito, não há dúvida de que tiveram sucesso.

O projeto do 914 progrediu com grandes esperanças, mas então o inesperado aconteceu, com consequênc­ias desastrosa­s para a Porsche. Em abril de 1968, Heinz

Nordhoff morreu de um ataque cardíaco.

Nordhoff e Ferry Porsche, ambos da velha guarda, haviam feito negócios em um acordo verbal e um aperto de mão. O substituto de Nordhoff, Karl Lotz, recrutado de fora do mundo do automóvel, não estava nem comprometi­do nem convencido do valor do 914, e aplicou um plano de custos completame­nte diferente para o projeto, desprezand­o os cálculos da Porsche. A carroceria do 914 e, no caso da VW, o carro completo, era produzida em Osnabrück pela Karmann, e a política de preços de Lotz significou que a Porsche foi forçada a pagar mais por uma carroceria de 914 do que estava pagando pela muito mais complexa carroceria do 911 - fornecida pelo mesma empresa! O Porsche já não parecia tão barato.

O propósito do 914 ficou ainda mais confuso com uma decisão da VW em nomear todos os carros destinados aos EUA, fossem de quatro ou seis cilindros, como Porsches, e vendê-los através de uma nova rede Porsche-audi, enquanto que na Europa eles iriam ser chamados de Vw-porsche - mas nenhum dos carros teria um emblema Porsche no nariz! Carros americanos teriam um emblema Porsche na grade motor, mas carros europeus não confuso, hein?

Muitos clientes norte-americanos ficaram decepciona­dos com a baixa potência de seus “Porsches” de quatro cilindros, embora a falta de potência do 914 fosse compensada pela dirigibili­dade, que recebeu elogios quase universais.

Mecanicame­nte, o novo 914 era uma mistura do Porsche 911 com o VW 411. A suspensão e a direção de pinhão e cremalheir­a eram puro 911, mas o motor central necessitav­a não apenas de uma distância entre eixos alongada, mas de uma nova suspensão traseira utilizando, pela primeira vez em um Porsche de estrada,

'0 914/6 muda de direcao com o entusiasmo de um kart, com pouco indico de viragem'

braços semi-arrastados com molas helicoidai­s atrás.

Os motores eram os de 80 bhp e 1,7 litro com injeção de combustíve­l do 411 e, em função de seu posicionam­ento como carro “nível de entrada”, o 914/6 usava o motor Porsche 911T de 2,0 litros e 110 bhp menos caro com carburador Weber. A caixa de velocidade­s em ambos os carros era a de cinco marchas Porsche 911 transeixo virada a 180 graus, com a roda matriz trocada de lado a lado para dar o número correto de velocidade­s para a frente.

Era óbvio que o chassi do 914/6 poderia lidar com muito mais potência, e os dois primeiros carros modificado­s eram verdadeiro­s hot rods. Construído para o 60º aniversári­o de Ferry Porsche e uso pessoal do engenheiro-chefe Ferdinand Piech, os dois carros foram equipados com o motor de corrida de oito cilindros e 3,0 litros do 908. O carro de Ferry tinha uma versão “de rua” com 260 bhp, enquanto o de Piech tinha 300 bhp. O 914/8 demonstrou que um 914/6 seria uma máquina potente.

Para a corrida na categoria Grupo 3 GT, a FIA permitia que os arcos das rodas fossem alongados em cinco centímetro­s, e a Porsche tirou vantagem disso, soldando arcos de aço na carroceria, na frente e atrás, cobrindo rodas Fuchs de 6 ou 7 polegadas. Consideraç­ões estéticas quase certamente não eram uma prioridade com esta modificaçã­o, mas imediatame­nte deixaram o 914 com uma aparência mais agressiva de pitbull. Finalmente, havia um 914/6 sexy - o GT.

Um ponto fraco do chassi do 914 era em torno dos pontos de encaixe do braço oscilante traseiro, que flexionava em curvas fechadas. A oficina Zuffenhaus­en consertou isso soldando placas de reforço dos pontos de elevação aos arcos de rodas traseiros. Foram colocadas barras estabiliza­doras, considerad­as desnecessá­rias para os carros de rua, e a barra traseira, na verdade, estava localizada dentro do compartime­nto de bagagem! O compartime­nto da frente era quase todo ocupado por um tanque de combustíve­l de longo alcance e o radiador.

O peso extra de todo esse aço adicionado foi compensado pela atenção meticulosa da Porsche na redução de peso em outras áreas. Fibra de vidro foi usada para os para-choques da frente e traseiros, bem como no capô e tampa do porta-malas, com a flexão neste último sendo minimizada por tiras de madeira! Os motores e mecanismos de faróis retráteis foram subtraídos (exceto nos carros de rali) e o acabamento interno foi muito simplifica­do. No geral, a redução de peso deixou o carro com 897 kg, 90 kg menos do que a versão de rua. Uma opção curiosa era uma cortina retrátil para a janela traseira, para corridas noturnas.

Para a série de 1970, a capacidade do 911 foi aumentada com a introdução do motor de 2,2 litros, e o 914/6 foi homologado como arma da Porsche na categoria até 2,0 litros.

A potência era fornecida pelo motor 901/20, a versão de corrida bem experiment­ada do motor 911, como montada no esportivo de corridas Carrera 6. A maior taxa de compressão, cabeçotes duplos, válvulas maiores, contrapeso do virabrequi­m e pistões mais leves resultaram em ao menos 210 bhp, e muitas vezes mais.

O registro de corrida do 914/6 GT teve um início promissor, com os quatro carros inscritos nos 1.000 Km de Nürburgrin­g terminando do segundo a quinto lugar na classe - atrás de um 911. Mas melhor estava por vir. Um 914/6 GT solitário entrou nas 24 Horas de Le Mans em 1970, correndo sob a bandeira da importador­a francesa de longa data Sonauto, e terminou em sexto lugar geral - à frente de todos os 911 e grande vencedor da categoria GT. Esta, aliás, foi a primeira vitória em Le Mans da Porsche, com o 917, e foi o pano de fundo para o famoso filme de Steve Mcqueen. No final do ano, uma equipe de fábrica com três carros participou da Marathon de la Route, uma cansativa corrida de 86 horas pelo do circuito de Nürburgrin­g. O 914/6 GT tornou-se o GT de 2,0 litros escolhido, sendo praticamen­te imbatível na pista.

O departamen­to de corridas da Porsche então construiu 12 carros para

Abaixo Catálogos mostram a herança do 914 como carro de corridas, mesmo como companheir­o do 917.

uso próprio da fábrica e mais 47 carros sob a opção M471, que deu aos clientes a possibilid­ade de encomendar um GT com suas próprias especifica­ções - e legal para vias públicas, se isso fosse necessário.

Um dos primeiros foi para o rico e entusiasma­do empresário suíço Ernst Seiler, que encomendou o chassi 914 043 0181, o carro visto aqui. Seiler pilotou um 911T/R nas temporadas de 1968 e 1969 antes de mudar para seu recém-entregue 914/6 GT em 1970, correndo sob a bandeira de Ski Hart Racing e, em seguida, mudou para Squadra Tartaruga em 1972.

Testamos este lindo 914/6 GT, agora propriedad­e de Simon Bowery, em Silverston­e. Lindamente repintado pela Sportwagen do especialis­ta em Porsche Bruce Cooper, o carro brilhou em um dos poucos dias misericord­iosamente secos do início de novembro. Simon foi rápido em apontar que o carro não é uma restauraçã­o no sentido convencion­al, mas sim uma reforma e remontagem.

Quando, em 2006, Simon encontrou o carro na Suíça, onde definhava com um motor danificado desde 1974, ele havia rodado meros 12.000 km - todos eles na pista - e estava completo, com a carroceria boa, mas em mau estado. A Sportwagen retirou toda a tinta do carro antes de repintá-lo no tom original Zitronenge­lb.

Enquanto isso, o motor e a caixa de velocidade­s foram enviados para o especialis­ta alemão Karl Hloch para uma cuidadosa retífica. A carroceria pintada foi remontada por Steve Winter em sua oficina independen­te especializ­ada em Porsche em Londres, a Jaz Porsche, antes de ser rebocada para as instalaçõe­s de Karl Hloch em Schorndorf e ter as peças remontadas.

A primeira impressão do carro é o quão minúsculo ele é. A série 914 era 10 centímetro­s mais baixa que um 911 contemporâ­neo e a área frontal menor resultava, apesar de sua aparência quadrada, em um coeficient­e de arrasto menor que o do 911. A cabine simples, no entanto, é extremamen­te espaçosa, com espaço em todas as direções exceto atrás, e o confortáve­l assento fica logo à frente do anteparo traseiro e tela vertical. Os pedais, parecidos com os do 911, foram ligeiramen­te deslocados para o centro do carro.

Quando frio, o motor precisa de um pouco de bombeament­o antes de pegar, mas, uma vez quente, basta uma volta na chave e ele ruge para a vida – e que rugido! O som de um boxer de seis cilindros Porsche mal silenciado é sensaciona­l. Um som cortado e forte que faz os nervos tremerem.

Apesar de estarem acontecend­o outros testes com máquinas exóticas naquele dia, as cabeças se viravam em nossa direção cada vez que o Porsche era acelerado.

A Porsche do Reino Unido gentilment­e permitiu que usássemos sua pista Experience Center para fotografar o carro antes de me deixar sem uma câmera de carro. Por acaso, o ex-piloto da Porsche Richard Attwood foi participar de um dia de corridas da Porsche e eu pedi que ele compartilh­asse suas lembranças sobre a época do 914/6.

Ele se lembrou de ter pilotado um GT de fábrica que seria usado para treinos até Targa Florio em 1970, mas, depois de discussões com seus colegas motoristas de fábrica, eles concluíram que o

'Quando Simon encontrou o carro, ele havia rodado meros 12.000 km - todos eles na pista'

carro não oferecia qualquer grande vantagem em relação o experiment­ado e testado 911. No entanto, ele sentiu que o 914/6 era mais fácil de ser conduzido perto do limite por um motorista de talento mediano, enquanto o 911 necessitav­a de um nível especial de habilidade para que fosse extraído o máximo dele. Essa era uma boa notícia, então.

A pista apertada da Porsche foi projetada para testar a agilidade ao invés de velocidade máxima, e possui uma seção de subida sinuosa que conduz a uma curva acentuada à direita no topo, seguida por uma série de descidas sinuosas, algumas ligeiramen­te inclinadas, terminando em uma curva acentuada à direita. Uma sucessão de transições abruptas que podem pegar de surpresa alguém não habituado a um dos primeiros 911.

O boxer de seis cilindros gira sem esforço através das rotações e realmente decola em 6.000 rpm e além da linha vermelha de 8.000 rpm, empurrando o carro ladeira acima sem fazer esforço.

As únicas partes de um 914/6 visíveis além da cabine são as pontas das luzes laterais em suas asas finas, e elas fornecem indicações perfeitas de como apontar o carro, que simplesmen­te muda de direção com o entusiasmo de um kart, com pouco indício de viragem, e nenhuma daquela sensação do 911 de estar no pivô de um pêndulo.

Ao sair das curvas em velocidade, os primeiros 911 levantavam a roda dianteira interna, às vezes bem longe do asfalto, mas o 914/6 não exibia nenhuma dessas caracterís­ticas.

Um aumento de potência em uma tentativa de quebrar a tração resultou em nada mais do que um aumento da força g lateral e um leve desvio para os lados - ajudado, sem dúvida, pelas rodas de magnésio Minilites mais largas (8 polegadas), mas originais do carro, na traseira. É certo que eu não estava em uma curva de 240 km/h, mas Simon e Steve confirmara­m que na muito mais rápida Silverston­e, a dirigibili­dade permanece bastante neutra e previsível no limite de velocidade.

Em comum com todos os carros de motor central, o nível de aderência não decepciona – mas quando o faz, é tão rápido que é quase inevitável girar. No entanto, eles tendem a girar em seu próprio eixo, ao contrário de um 911 ou 356, que, quando as leis da física são ultrapassa­das, ou saem de cena em uma tangente, ou entram em uma oscilação intensa de arrepiar.

O ponto fraco na cadeia mecânica do 914/6 é o câmbio. Esqueça a mudança de marchas macia do 911. Ela foi substituíd­a por uma aventura preocupant­emente imprecisa no desconheci­do. A ligação é longa e complicada, e Steve está tentando encontrar maneiras de torná-la mais precisa, mas devo confessar que, na minha breve experiênci­a com o carro, eu nunca estive inteiramen­te confiante de que iria soltar a embreagem na marcha certa.

Algumas vezes, eu deixei as rotações caírem e provoquei uma tosse consideráv­el nos carburador­es Weber. Mantenha as rotações onde elas devem estar e o 914/6 proporcion­a uma viagem gratifican­te, indo exatamente aonde você quer e se mantendo colado no asfalto como uma sanguessug­a almoçando.

O 914/6 pode até ter sido bem-sucedido na pista, mas não foi um sucesso no showroom. Apesar de o 914 ser o carro esportivo mais vendido na Alemanha em 1970 e 1971, a Porsche vendeu apenas 3.332 unidades de 6 cilindros antes de cessar a produção em 1971. O 914, muito melhorado, foi finalmente abandonado em 1975. Levou quase 20 anos até que o público pudesse novamente desfrutar das emoções de um motor central Porsche, com o lançamento do Boxster.

'0 914/6 era mais facil de ser conduzido por um motorist de talent median que o 911'

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 ??  ?? Abaixo Os arcos foram aumentados para função, não forma, mas dão um ar mais agressivo ao 914.
Abaixo Os arcos foram aumentados para função, não forma, mas dão um ar mais agressivo ao 914.
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 ??  ?? Acima e à direita Tampa traseira curva. Bocal de combustíve­l de acesso rápido em vez do costumeiro, dentro do capô.
Acima e à direita Tampa traseira curva. Bocal de combustíve­l de acesso rápido em vez do costumeiro, dentro do capô.
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Abaixo O motor está na parte traseira, o estepe na frente, e o interior é uma curiosa mistura de padrão e rali.

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