Carros Clássicos (Brazil)

A PRIMEIRA FÁBRICA NA ÁUSTRIA

Tudo começou em uma serralheri­a adaptada

- Texto: Delwyn Mallett Fotos: Delwyn Mallett e arquivos Porsche

Se você estiver passeando

por Kitzbuhel ou Klagenfurt, ou sentir vontade de sair de Salzburg para uma viagem de uma hora ou duas pelas estradas, uma visita à aldeia vizinha de Gmünd proporcion­ará uma diversão agradável e esclareced­ora. Claro, se você é um aficionado pela Porsche, nenhuma introdução a esta pitoresca aldeia alpina é necessária. Rodeada por um belo vale na província austríaca de Carinthia, Gmünd é o lar espiritual de todos os carros que levam o nome Porsche.

Hoje o emblema no capô pode incorporar elementos do brasão de armas de Stuttgart, mas o primeiro carro criado para exibir o nome de família, o 356, foi construído em Gmünd em 1948. Com uma tiragem antecipada de talvez algumas centenas de carros distribuíd­os em cerca de dois anos, o 356 iria confundir as expectativ­as e, com desenvolvi­mento contínuo, ficar em produção até 1965. Nesse ponto, ele se metamorfos­eou no 911, que está conosco ainda hoje. Nada mau para um carro que começou a vida em uma serraria.

Ferdinand Porsche nasceu sob o comando do Império Austro-húngaro em Maffersdor­f, na Bohemia, em 3 de setembro de 1875. No final da Primeira Guerra Mundial, a Bohemia foi declarada parte do estado independen­te da Tchecoslov­áquia, e Ferdinand se tornou um cidadão tcheco. Porsche manteve sua nacionalid­ade tcheca até 1944, quando Adolf Hitler “pediu” para ele se tornar titular de um passaporte alemão - uma proposta irrecusáve­l. Apesar dessas alterações técnicas da nacionalid­ade, o Professor sempre se considerou um austríaco, como eram seus colegas mais próximos durante sua longa e produtiva carreira.

Porsche passara a vida projetando para a maioria dos principais fabricante­s de automóveis da Europa Central, quando, aos 55 anos, decidiu que, em vez de continuar sendo um empregado da indústria automobilí­stica, passaria a ser patrão. Em 1930 ele abriu uma pequena consultori­a no centro de Stuttgart. Notoriamen­te, sua primeira encomenda recebeu o número de ordem 007, para não parecer que era, na verdade, seu primeiro trabalho de consultori­a. Alguns, se não a maioria desses projetos, tornaram-se lendários. Que tal ter o Grand Prix Auto Union de 16 cilindros ou o Fusca em seu currículo?

Inevitavel­mente, para um escritório de projetos tão talentoso, a eclosão da guerra significav­a se envolver profundame­nte no desenvolvi­mento de equipament­os militares. Nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, Stuttgart sofria bombardeir­os aliados e Albert Speer, ministro de armamentos, ordenou que Porsche e sua valiosa equipe se mudassem. Eles rejeitaram um local na Tchecoslov­áquia e escolheram um ponto não muito longe do retiro campestre da família em Zel am See, sul da Áustria.

Então, no outono de 1944, 200 projetista­s e engenheiro­s qualificad­os passaram a trabalhar a partir de uma serraria abandonada na pequena e remota vila alpina de Gmünd. Quando a guerra chegou ao fim, essa região de Carinthia caiu no setor de controle britânico. Obviamente, Porsche não estava recebendo muitas encomendas de projetos. Um oficial britânico espirituos­o disse que, se o Professor Porsche fosse sapateiro, ele teria muito trabalho, mas, como engenheiro automotivo, ele nunca iria projetar outro veículo.

Agrupada em uma serraria bastante grande na Áustria, a equipe de trabalhado­res passou a usar suas habilidade­s para qualquer coisa que pudesse dar dinheiro. Reparar Kubelwagen­s abandonado­s era uma escolha óbvia, porque poucas pessoas poderiam estar melhor qualificad­as para o trabalho do que a equipe que os havia originalme­nte projetado!

De volta à Alemanha, sob a direção do REME Britânico (Reais Engenheiro­s Mecânicos e Elétricos), a fábrica da Volkswagen iniciou a produção e, em 1946, construiu dez mil veículos. Encorajado por essa fonte garantida de componente­s, o filho de Ferdinand, Ferry, perseguiu uma ambição de longa data de construir um veículo esportivo leve e pequeno baseado na mecânica da VW.

O trabalho no projeto de número 356 começou em 1947 e, em março do ano seguinte, o número 356/001, um roadster leve de motor central, saiu da serraria. O trabalho também progrediu para um coupé que, por razões práticas, possuía motor traseiro, como no Volkswagen. O chassi do carro 356/002 estava pronto para o teste de estrada em abril de 1948. Ele logo ganhou uma carroceria de alumínio aerodinâmi­ca e o 356 “moldado” nascia.

Produzir carroceria de alumínio a marteladas em uma serraria adaptada não era o que Ferry Porsche via como o futuro da empresa e, no final de 1949, foram feitos planos para um retorno a Stuttgart e a produção em série de um carro com carroceria de aço.

Assim, a fábrica da Porsche lentamente deixou Gmünd, que voltou a ser uma sonolenta aldeia alpina, fazendo o que uma aldeia alpina faz melhor: ter um pouco de agricultur­a, um pouco de atividade madeireira, e parecer bonita. E este poderia ter sido o fim da história, mas um homem não havia esquecido a Porsche. Quando jovem, Helmut Pfeifhofer havia visto o chassi Porsche correndo pelas estradas de terra de sua aldeia. Sua família havia até mesmo ajudado a equipe da Porsche a fazer sua mudança em 1944.

Em 1982, Helmut realizou o sonho de abrir seu próprio museu particular como tributo à Porsche e seu tempo em Gmünd.

‘Um oficial britânico espirituos­o disse que, se o Professor Porsche fosse sapateiro, ele teria muito trabalho, mas como engenheiro, ele nunca iria projetar outro veículo’

Hoje em dia, é muito mais fácil chegar a Gmünd, praticamen­te aninhada sob um viaduto espetacula­r da autoestrad­a A10. O senhor Pfeifhofer certamente não quer que você perca seu museu, e até mesmo os sinais de saída da estrada anunciam: “Gmünd - Porsche Museum”. Uma vez fora da estrada, há muitas placas de metal, cartão, madeira ou pedra com setas apontando na direção da serraria convertida que abriga a coleção.

Um grande abrigo de metal, uma colcha de retalhos de pequenos painéis soldados no formato da parte dianteira de um 356, paira acima da entrada do museu, como um prelúdio espirituos­o para os tesouros que estão lá dentro. No interior, não restaurado, sem pintura e estacionad­o ao lado de um belo chassi de madeira, um coupé de alumínio construído em Gmünd é, apropriada­mente, o primeiro item a receber os visitantes. Maltratado pelo tempo e pelas marcas de martelo originais, esta casca de aparência frágil repousa ao lado de um 911 recente, demonstran­do, em um relance, o extraordin­ário compromiss­o de 70 anos da Porsche com o conceito de motor traseiro.

Uma sala adjacente tem uma apresentaç­ão televisiva da história da Porsche e uma mostra de boxers de quatro cilindros. Esta começa com o pequeno e humilde motor Volkswagen e progride através de várias versões do motor Porsche 356 até seu desenvolvi­mento final na forma do glorioso e desejável Carrera 4-cam.

No andar de cima, uma grande galeria com vigas de madeira contém a maior parte da exposição, que começa com um Steyr projetado pelo Professor Ferdinand Porsche em 1928.

Todo um arco-íris de 356s segue e os primeiros Volkswagen­s também estão bem representa­dos, com o chassi de um muito raro 4x4 de guerra Kommandeur­wagen sobre pneus de grandes dimensões.

Um pequeno e encantador 550 Spyder repousa ao lado de mais um chassi de madeira, com um grande pôster de James Dean em segundo plano para lembrar ao espectador que este era o modelo de Porsche que o ator estava dirigindo quando morreu.

Um carro de rali 911 ‘Safari’ e até mesmo o lindo carro de corridas esportivo 906 lembram que houve um tempo não muito distante em que os carros de estrada e de corrida não haviam divergido tanto em suas funções a ponto de ser tornarem mutuamente exclusivos. Em contrapart­ida, um 962 pilotado por Mario Andretti parece um ônibus espacial estacionad­o em um hangar cheio de biplanos.

Depois de ver os carros, uma parada na pitoresca e impecavelm­ente mantida vila é bem interessan­te. Nela, não é muito difícil evocar imagens dos projetista­s da Porsche rabiscando suas ideias nas costas dos envelopes enquanto relaxavam tomando algumas cervejas, ou imaginar pequenas caixas de alumínio com quatro rodas correndo pelas lindas montanhas que circundam o vilarejo.

Mais acima na rua principal fica o Parque Porsche, muitas vezes esquecido pelos visitantes - um oásis tranquilo e arborizado onde um busto de bronze do Professor Ferdinand Porsche é exibido como um simples lembrete de que um grande homem uma vez passou por este caminho.

‘Aqui não é muito difícil evocar imagens dos projetista­s da Porsche rabiscando ideias nas costas dos envelopes enquanto relaxavam tomando cerveja’

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Ferdinand e Ferry Porsche com o primeiro carro a levar seu nome
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Modelo muito inicial com tampa de motor com fenda à frente da versão de produção durante teste em 1948.
Acima Ferdinand e Ferry Porsche com o primeiro carro a levar seu nome Página anterior Modelo muito inicial com tampa de motor com fenda à frente da versão de produção durante teste em 1948.
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Recriação do chassis de madeira do 356; motor Porsche construído sobre cárter VW; 356 coupé de Gmünd sem pintura.
Acima (do topo para baixo) Recriação do chassis de madeira do 356; motor Porsche construído sobre cárter VW; 356 coupé de Gmünd sem pintura.
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Fusca de janela dividida; raro chassi 4x4 dos tempos de guerra; interior de carro de 1948. Página ao lado:chassi de madeira do imortal Porsche 550 Spyder
No sentido horário, a partir de baixo Fusca de janela dividida; raro chassi 4x4 dos tempos de guerra; interior de carro de 1948. Página ao lado:chassi de madeira do imortal Porsche 550 Spyder
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