Arte sobre RODAS
A união do design italiano com a confiável mecânica VW a ar originou aquele que é considerado um dos mais belos projetos já desenvolvido na história do automóvel
HHá exatamente sessenta anos era desenvolvido o projeto do VW Karmann Ghia. Foi precisamente durante o ano de 1953, após a fábrica de carrocerias alemã Karmann fechar um acordo de colaboração com o “studio” italiano de design Ghia. Segundo consta, a decisão de apresentar a proposta de um modelo esportivo ao comando da Volkswagen foi tomada após Wilhelm Karmann Jr. ter conhecimento de uma visita feita por Sergio Pininfarina a Wolfsburg. Naquela ocasião, o “studio” italiano Pininfarina – que ainda não gozava da fama internacional que desfruta atualmente, devido à sua bem-sucedida parceria com a Ferrari – apresentou a Heinrich Nordhoff esboços de uma versão esportiva desenvolvida para ser montada sobre o chassi do Fusca. A inspiração se baseava no Porsche 356, que já fazia muito sucesso utilizando a base mecânica do popular besouro.
O executivo alemão, entretanto, recusou a proposta. Pragmático, Nordhoff acreditava que não era oportuno na ocasião investir tempo, dinheiro e espaço na linha de
montagem para um modelo esportivo. Na visão do executivo, era muito mais vantajoso concentrar esforços na ampliação da produção do Fusca, já que as vendas do besouro se mostravam cada vez mais promissoras, tanto internamente como nos mercados mundiais.
A incursão de Pininfarina, entretanto, chamou a atenção da Karmann, que já tinha uma parceira com a Volkswagen para a transformação da versão Cabriolet do Fusca e que também pensava num esportivo sobre a plataforma do besouro. Assim, Wilhelm Karmann Jr. se apressou em também apresentar a Nordhoff os esboços de um modelo esportivo conversível, elaborado por seus próprios estilistas. Mas o comandante da Volkswagen não só desdenhou da ideia, como foi ácido ao comentar que os esboços de Pininfarina eram bem mais atraentes.
OPORTUNO PRAGMÁTICO, HEINRICH NORDHOFF ACREDITAVA QUE NÃO ERA NA OCASIÃO INVESTIR TEMPO, DINHEIRO E ESPAÇO NA LINHA DE MONTAGEM EM UM MODELO ESPORTIVO VOLKSWAGEN
CHARME ITALIANO
Wilhelm Karmann Jr. não gostou nem um pouco do comentário de Nordhoff, mas não desistiu do objetivo e preparou um contra-ataque. Para isso, procurou um aliado na “terra” do próprio Pininfarina, acertando uma parceria com a italiana Ghia, que na época já gozava de muito prestígio. O estúdio, que havia sido fundado por Giacinto Ghia em 1915, era então comandado por Luigi Segre e tinha no portfólio projetos elogiados como o então recém-lançado Lancia Aurelia B-20 cupê.
Além disso, a fama de Ghia já havia ultrapassado o Atlântico e a empresa italiana também tinha
um acordo de colaboração com a Chrysler, para a qual confeccionava os protótipos dos modelos conceituais criados pelo departamento de estilo da marca americana em Auburn Hills, próximo a Detroit. A criatividade italiana, somada aos custos baixos e rapidez na execução, era muito interessante para a Chrysler. Isso, entretanto, acabou gerando alguma controvérsia quando o Karmann Ghia foi lançado no mercado, em 1955.
Na época, insinuou-se que as linhas do esportivo VW eram basicamente uma redução do design do Chrysler D'elegance, carroconceito desenhado em 1952 pelo renomado estilista americano Virgil Exner, cuja carroceria fora confeccionada pela própria Ghia. Exner, entretanto, não reclamou, já que também participou do desenvolvimento do desenho do Chrysler o estilista italiano Mario Boano, que na época era funcionário da Ghia. Vale lembrar que, na mesma época, o estilista americano também prestava consultoria ao “carrozziere” italiano.
Mas a direção da Ghia prontamente rebateu as críticas, afirmando
que o projeto encomendado pela Karmann fora desenvolvido por uma equipe da empresa comandada pelo próprio Luigi Segre, sendo o desenho creditado a Mario Boano, apesar dos detalhes finais terem sido realizados por Sergio Sartorelli – que assumiu o cargo de chefe da equipe de desenho da Ghia, sucedendo Boano, quando este foi montar seu próprio estúdio.
Porém, não há dúvida: controvérsias à parte, basta comparar o desenho dos dois modelos para perceber que o esportivo da VW teve inspiração direta em importantes detalhes do modelo conceitual da Chrysler. Especialmente no que se refere à curvatura dos para-lamas traseiros e na área envidraçada. Mas, apesar das semelhanças, não se pode negar que o Karmann Ghia tem sua própria identidade, que foi aclamada em todo o mundo e que se caracteriza pelo perfeito equilíbrio das linhas. Tanto que é considerado um marco na história do design automobilístico, uma verdadeira obra de arte. Não por acaso, um exemplar faz parte do acervo do badalado Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA).
CONTROVÉRSIAS À PARTE, BASTA COMPARAR O DESENHO DOS DOIS MODELOS PARA PERCEBER QUE O ESPORTIVO DA VW TEVE INSPIRAÇÃO DIRETA EM IMPORTANTES DETALHES DO MODELO CONCEITUAL DA CHRYSLER
CATIVANDO NORDHOFF Desenvolvido em ritmo acelerado, o protótipo do Karmann Ghia foi construído em apenas cinco meses e apresentado à direção da VW em novembro de 1953. Ao ver o esportivo, Nordhoff imediatamente percebeu o potencial do projeto e, ao contrário das investidas anteriores, “comprou a ideia”. Mas não sem antes impor
algumas condições: a Karmann assumiria todos os riscos do projeto e levantaria o dinheiro necessário para os investimentos na construção da linha de montagem que seria na sua própria fábrica, na cidade alemã de Osnabrück. À Volkswagen caberia apenas fornecer a plataforma mecânica, além de ter exclusividade na comercialização do modelo.
Batizado internamente de VW Tipo 14, o Karmann Ghia chegou ao mercado em outubro de 1955. O visual de puro-sangue logo chamou a atenção do público, embora não combinasse com o desempenho. A velocidade máxima era de 125 km/h, apenas 10 km/h superior à do Fusca, o que levou muitos “puristas” a torcerem o nariz para o “esportivo” da Volkswagen. Mesmo assim, o modelo se mostrou um sucesso imediato. Tanto que a Karmann logo se viu obrigada a aumentar os investimentos na linha de montagem para atender a demanda. Da proposta inicial, que previa 300 unidades/mês, a empresa em pouco tempo alcançou a produção de 50 carrocerias/dia. Lançado apenas na versão cupê, o esportivo ganhou sua versão conversível em 1957. Nessa época, ele também serviu como “cartão de visitas” para a Volkswagen reforçar sua imagem a fim de “atacar” o rico mercado dos Estados Unidos, onde a marca investia pesado para ampliar sua participação com o Fusca. O Karmann Ghia Tipo 14 foi fabricado na Alemanha até 1974, mantendo basicamente o mesmo estilo, com exceção de alguns detalhes que marcaram sua natural evolução.
Em vinte anos de produção, de 1955 a 1974, o KG Tipo 14 superou a marca das 465 mil unidades produzidas – incluindo aí as cerca de 23.600 unidades fabricadas no Brasil, de 1962 a 1971. Somente no mercado americano, mais de 280 mil unidades foram comercializadas, o que representa algo em torno de 60% da produção total do esportivo. A fábrica alemã da Karmann, construída
especialmente para a produção do modelo, fabricou mais de 440 mil unidades, sendo 362.601 cupês e 80.881 conversíveis. Números que ainda hoje fazem do Karmann Ghia um dos modelos de maior sucesso neste segmento específico de mercado.
EVOLUÇÃO NATURAL
O protótipo do Karmann Ghia apresentado a Nordhoff em 1953 ainda não tinha as falsas entradas de ar na dianteira e as lanternas traseiras eram bem menores. Por sinal, este protótipo está guardado no museu da Karmann em Osnabrück. Para a apresentação oficial, no dia 14 de setembro de 1955, durante o Salão de Frankfurt, algumas alterações foram feitas, como as características entradas de ar no bico do carro, com dois frisos, desenhada por Sergio Sartorelli. Após o lançamento comercial, as primeiras mudanças no estilo foram realizadas em 1957, quando, além da chegada da versão conversível (lançada em
setembro), o acelerador deixou de vir com a antiga “rodinha”, substituída por pedal, os revestimentos internos das portas trocaram o tecido por couvim e os para-choques ganharam os detalhes em tubos (popular poleiros), especialmente desenvolvidos para atender ao mercado americano – já no mercado europeu, o modelo continuou sendo comercializado com os para-choques de lâmina única. As principais alterações no desenho original, entretanto, só foram adotadas em 1959, com o aumento das tomadas de ar dianteiras, que também passaram a exibir três frisos, ao mesmo tempo em que os faróis ficaram maiores e montados em posição ligeiramente (duas polegadas) mais elevada, o que acabou quebrando a suave e característica curva dos para-lamas dianteiros. Na traseira, as lanternas também ficaram maiores e com desenho ovalado, enquanto o volante tipo “corcunda” foi substituído pelo popularmente conhecido como “cálice”. Foi com esta versão, aliás, que o cupê chegou ao Brasil em 1962, embora depois disso o modelo tenha evoluído de maneira distinta em cada mercado.
No ano seguinte, 1960, a potência do motor 1200 foi aumentada para 34 cv (já com a carcaça tripartida e outras modificações), e a caixa de câmbio de quatro velocidades foi totalmente sincronizada. Em 1961, o layout VW no bico do carro foi revisado. No ano seguinte, o nome Volkswagen passou a estampar a traseira do Karmann Ghia. Em 1964, a capota da versão conversível foi ligeiramente alterada, enquanto duas alavancas ao
FOI COM A VERSÃO LANÇADA NA EUROPA EM 1959 QUE O KG CHEGOU AO BRASIL EM 1962, EMBORA DEPOIS DISSO O MODELO TENHA EVOLUÍDO DE MANEIRA DISTINTA NA PRODUÇÃO ALEMÃ E BRASILEIRA...
lado do freio de estacionamento substituíram a antiga roseta do sistema de aquecimento. Em agosto de 1965, a versão alemã ganhou novo motor 1300 (1.295 cm³) equipado com carburador Solex 30 PICT, ganhando em aceleração e desempenho. A bateria foi movida para o lado esquerdo do compartimento do motor, invertendo de posição com o filtro de ar, enquanto o retrovisor externo passou a ser fixado na porta do motorista. Em agosto de 1966, já como linha 1967, o Karmann Ghia alemão recebeu nova injeção de ânimo com o motor de 1.500 cm³, além do transeixo de bitola 6,2 cm mais larga (que só foi adotado no modelo brasileiro em 1970), quarta marcha alongada, duplo circuito de freio com discos na dianteira, rodas de quatro parafusos e sistema elétrico de 12 volts. O painel também foi revisado, com revestimento imitando madeira e novos instrumentos. Ainda na mesma ocasião, o modelo passou a ser oferecido opcionalmente com ar-condicionado e com o câmbio semi-automático Stickshifit, manual de três marchas, porém sem pedal de embreagem, especialmente para reforçar as vendas no mercado americano. Já em 1968, o vigia ganhou desembaçador elétrico e a versão conversível veio com janela de vidro na traseira. Na mesma ocasião, os bancos dianteiros ganharam apoios de cabeça e o bocal do tanque de combustível passou para o lado externo da carroceria (o que jamais ocorreu na versão brasileira), ambas me
KARMANN RETIRADA DE LINHA NO BRASIL, EM 1971, A VERSÃO ORIGINAL DO GHIA CONTINUOU EM PRODUÇÃO NA ALEMANHA, ONDE JAMAIS PAROU DE EVOLUIR PARA SE ADEQUAR ÀS NORMAS DE SEGURANÇA
didas obedecendo à legislação americana vigente na época. Em 1970, ao mesmo tempo em que o Karmann Ghia passou a ser equipado com o motor 1600 (1.584 cm³) de 50 cv de potência, novas alterações foram realizadas na carroceria da versão fabricada na Alemanha, como a adoção de lanternas de sinalização dianteiras maiores e envolventes, enquanto as lanternas traseiras também ficaram maiores, forçando um recorte mais avançado na carroceria. O modelo alemão também vinha com lanternas traseiras de neblina.
Enquanto deixava de ser fabricada no Brasil, em 1971, a versão original do Karmann Ghia continuou em produção na Alemanha e teve suas últimas alterações na linha 1972 para se adequar às normas de segurança dos EUA. Com isso, passou a ser equipado com enormes para-choques e novas lanternas de sinalização, que afetaram as linhas originais. Estes para-choques, mais largos e parrudos, deviam resistir, sem deformação, a batidas de até 8 km/h. Porém, a curva de vendas do modelo já estava em forte processo de queda em todos os mercados. No dia 21 de dezembro de 1971, o Tipo 14 deixou de ser comercializado no mercado europeu, mas foi mantida a produção para exportação. Em 21 de junho de 1974, no entanto, foi fabricada a última unidade do charmoso esportivo Volkswagen.
KARMANN GHIA NO BRASIL
Fora da Alemanha, o Karmann Ghia só foi fabricado em larga escala no Brasil (houve uma pequena produção na Suíça e na Bélgica, em fábricas independentes que pres
tavam serviço à Karmann quando esta não conseguia atender a demanda de mercado). Isso devido ao entusiasmo de Friedrich Wilhelm Schultz-wenk, executivo responsável pela implantação da filial brasileira da VW e que também convenceu Wilhelm Karmann Jr. a investir na montagem de uma filial em São Bernardo do Campo (Grande São Paulo), numa área praticamente vizinha à da própria Volkswagen. Lançado no mercado brasileiro no segundo semestre de 1962, o modelo Tipo 14 permaneceu em produção até 1971, somando um total de 23.578 unidades – número modesto em relação à produção da matriz, mas que também pode ser considerado um sucesso se analisarmos que a fabrica
ção nacional durou metade do tempo da alemã e que foi praticamente comercializada apenas em nosso então ainda incipiente mercado interno, enquanto a Alemanha produzia para todo o mundo, especialmente para o gigante Estados Unidos.
Do total produzido pela Karmannghia do Brasil, como a empresa foi registrada aqui, 23.401 unidades foram da versão cupê, enquanto apenas 177 pertenciam à versão conversível, modelo lançado em 1968. Em contrapartida, o mercado brasileiro teve a exclusividade de uma versão especial do esportivo, fabricada e comercializada apenas pela filial de São Bernardo do Campo: o Karmann-ghia TC (Touring Coupé). Desenhado pelo departamento de estilo da Volkswagen do Brasil, segundo consta com a consultoria do estilista italiano Giorgetto Giugiaro, o modelo foi lançado em 1971 como ano/modelo 1972 e sucedeu o Tipo 14 na linha de montagem. Disponível no mercado até 1976, o TC somou um total de 18.119 unidades.