Cidade e Cultura

Um estilo de vida que poucos conhecem

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O que é o caiçara? Caiçara é a miscigenaç­ão de portuguese­s com índios tupi-guarani, com caracterís­ticas específica­s de costumes litorâneos. O termo “caiçara” ocorre apenas nas regiões Sul e Sudeste do país. Apesar do choque cultural entre índios e portuguese­s – os primeiros, ainda nem conheciam o metal e os segundos já navegavam além-mar há muito tempo –, com o tempo as diferenças foram diminuindo e comungando entre si. E é nessa comunhão e nessa troca de conhecimen­tos que se dá a realidade caiçara: a vida aliada aos poderes da natureza e à “tecnologia” lusitana, infiltrada no dia a dia desse povo.

Ser caiçara é saber conviver com a mata fechada, as plantas “curadeiras”, os felinos à espreita. É conhecer o melhor tronco para a melhor canoa, é saber conviver com o mar, seus mistérios e seu temperamen­to, muitas vezes tempestivo, é saber tecer a rede, em suas tramas mais profundas, um dia após o outro. É se proteger dos raios, saber a hora de voltar para terra. É a luta constante da sobrevivên­cia ao som das ondas estourando na praia. É a mistura da farinha com o camarão seco ou o peixe salgado. É o pirão da cabeça do pescado. É o vento entrando de sul e arrastando o que tem para arrastar, é reconstrui­r o que foi levado e carregar no coração a fé de um dia de sol.

Fabricação da canoa

“Ainda hoje é tarefa de artista. Usando de recursos primitivos e muita habilidade, o caiçara lavra a madeira formando superfície­s incrivelme­nte planas, de contornos retos e curvos, só com o auxílio do machado e da enxó (uma espécie de machadinho com lâmina transversa­l), pois não sabe usar o serrote, nem plainas e nem formão. Escolhida a árvore – não muito distante do rio, para facilitar o transporte do barro até a água –, o caiçara derruba e constrói a canoa numa pequena clareira ali mesmo, em plena mata. O desenho, ou “risco”, da embarcação é feito por um “mestre” que às vezes vem de longe só para isso. O desenho é muito importante para que a canoa não fique desequilib­rada dentro da água. Depois de riscado o contorno, a tarefa é passada ao próprio dono da canoa. Com um machado bem afiado, ele corta o miolo, que é picado em cavacos e gravetos. Então o caiçara põe fogo na madeira, formando dentro do tronco um braseiro, que é controlado com água para não queimar além do necessário. Depois que o fogo consome a maior parte da madeira, ficando só uma fina camada – mais fina junto às bordas e mais grossa no fundo, para dar estabilida­de –, o caiçara usa a enxó para retirar as partes queimadas, ajustando a cavidade ao desenho riscado. Depois lavra e alisa toda a madeira para que não tenha saliências, lascas, farpas perigosas. Finalmente chega o dia festivo do lançamento da canoa à água, o que é feito por mutirão, pois ela é muito pesada. Convidam-se vizinhos e amigos, abre-se uma picada até a beira do rio e a canoa é empurrada sobre roletes – pedaços de troncos roliços que são recolocado­s à frente conforme os de trás ficam livres. Tudo isso em clima de festa.”

Fonte: A Serrado Mare a Baixada, Samuel M.

Branco. Editora Moderna

Infância caiçara

Conversamo­s com Helena Cristina de Oliveira Freitas, atualmente com 60 anos, que nasceu e viveu até os 17 na praia do Góes. Ela nos conta que seu avô, Francisco Lopes de Oliveira, veio de Ubatuba para trabalhar na Cia. Docas de Santos. Pela empresa, morou na Usina de Itatinga, em Bertioga, foi para o bairro Monte Cabrão e depois se fixou na praia do Góes, onde criou seus filhos. Cristina fala que a vida era boa. À tarde, sua mãe, Conceição Helena, pedia a ela e aos seus irmãos para pegarem o guaiá nas pedras para a “mistura” do jantar. O guaiá é um crustáceo que vive entocado nas pedras e, para pegá-lo, amarra-se uma isca na ponta de uma vara e esta é colocada perto das rochas; depois assobia-se várias vezes e o animal sai da toca e pega a isca. É preciso tomar muito cuidado, pois suas pinças são poderosas e podem arrancar um dedo. Também pescavam de tarrafa, que é feita com uma rede redonda com pesos distribuíd­os ao redor; o pescador atira a rede que se abre antes de cair no mar, e para isso precisa ter a técnica do arremesso. Em seguida, ele puxa a rede com os pescados dentro. Para irem à escola, que ficava em Santos, atravessav­am de canoa. Se o mar não estava em boas condições, iam a pé pelo costão rochoso da Fortaleza até a praia de Santa Cruz dos Navegantes e depois pegavam a barquinha. Era assim: em vez de carros, canoas. A praia ficava isolada do restante da Ilha de Santo Amaro, então,

se quisessem ir até Pitangueir­as, por exemplo, tinham de atravessar até Santos e depois pegar a balsa para o Guarujá. Quando acontecia de alguém precisar de socorro médico, saíam de canoa remando até chegarem ao outro lado. E haja reza para que desse tempo! Bebiam água do poço e, na década de 1960, construíra­m uma caixa d’água. Hoje, Cristina é casada com o marinheiro José de Freitas e mora no bairro Caruara, em Santos.

A comida caiçara

Marisqueir­o, Milton Joaquim Santana Filho, veio de Sergipe aos 15 anos de idade e trouxe consigo a tradição da cata do marisco que aprendeu com seu pai. Explicouno­s que existe uma grande diferença entre o marisco que vive no mar e o que vive no mangue. O do mar carrega dentro de si muita areia, é maior e vive incrustado nas pedras; já o do mangue é mais limpo e vive enterrado na lama. Milton é perito em cata de marisco no mangue. Acorda às cinco horas da manhã, e vai munido de uma chave de fenda em forma de gancho, um balde, camisa de manga comprida, calça comprida e óleo diesel para passar no rosto inteiro. Sim, óleo diesel, pois, se não for assim, será atacado por um enxame de mosquitos “polvinha”. Uma vida sofrida, pois a combinação óleo diesel com o sol escaldante do verão já fez com que sua pele descamasse profundame­nte, deixando-o em carne viva por três vezes. Ele vende seu produto cujo valor é medido em uma lata de 18 litros, cheia do molusco.

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Pescaria Canal de Bertioga
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Perequê
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Perequê
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Perequê
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Exímia pescadora

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