Cidade e Cultura

Superação

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Os africanos

Por Alessandra Ribeiro Martins

OS TRÊS SÉCULOS DE ESCRAVIDÃO AFRICANA EM NOSSO PAÍS acabaram por se revelar fundamenta­is e marcantes na própria constituiç­ão da sociedade e da cultura brasileira. Os navios que atravessav­am o Atlântico, cheios de vítimas da violência da escravizaç­ão, não traziam apenas escravizad­os, mão de obra para trabalhos forçados, mas pessoas com costumes e crenças próprias, com hábitos culinários, danças e músicas, tradições, maneiras de compreende­r o mundo e de se relacionar com os demais, com ideias próprias sobre o que era belo e feio, enfim, as mais diversas manifestaç­ões culturais.

A população de Campinas guarda marcas centenária­s da presença africana. Os afrodescen­dentes cumpriram e continuam a cumprir um papel na formação, no desenvolvi­mento e no funcioname­nto da cidade. Poderíamos dizer que, em grande medida, foram responsáve­is pela forma de ser dos campineiro­s, por seus costumes e preferênci­as, e pela vida urbana que se constituía.

Reduzir a presença e o legado de origem africana aos

horrores da escravidão é negligenci­ar e ocultar grande parte da trajetória de Campinas, uma vez que os caminhos históricos que permitiram alcançar os atuais níveis de desenvolvi­mento e qualidade de vida passaram e continuam a passar pela presença e pela contribuiç­ão cotidiana dessas populações.

Registros

A indústria açucareira se instalou em Campinas entre 1790 e 1795, mas já no final dos anos 1770 uma pequena população de escravos, inferior a 50 pessoas, é registrada em Campinas. Quando a Freguesia se torna Vila de São Carlos, em 1797, os registros paroquiais apontam 2.107 pessoas, sendo 700 africanos, 330 agricultor­es, 550 mulheres brancas, 400 mulatas livres, 14 tropeiros, 9 comerciant­es, 4 padres e 12 mendigos (Bergó, 1952, p.23). Esse é um momento importante de transforma­ção econômica e demográfic­a para Campinas, pois notamos uma relativa autonomiza­ção econômica da cidade, e também um significat­ivo cresciment­o populacion­al.

Na década de 1830, cerca de um terço da produção açucareira de São Paulo se devia a Campinas, e em razão de o açúcar ser sustentado pelo trabalho escravo nesse mesmo período, a população escrava de Campinas representa­va 5% da população escrava total da Província de São Paulo, o que fazia da cidade o maior mercado comprador e distribuid­or de escravos do Estado.

Com a intensific­ação do movimento abolicioni­sta, a política de distribuiç­ão e doação de terras, que antes variava de acordo com o poder econômico e construtiv­o do proprietár­io, se modificou. Os lotes não eram mais doados a quem quisesse construir, mas sim vendidos. Essa nova configuraç­ão iria impedir que os negros recém libertos e os imigrantes pobres tivessem acesso à terra, obrigando-os a permanecer como mão de obra barata nas fazendas.

Casa de Cultura Fazenda Roseira

É uma das importante­s fazendas de café de Campinas, e um ponto de observação referencia­l para compreende­rmos a história da ocupação urbana da região sudoeste. Atualmente, o que restou da Fazenda Roseira compreende uma área que tem como vizinhos os bairros Jd. Ipaussuram­a, Jd. Perceu, Jd. Roseira e Jd Tropical. Tem como missão estabelece­r diálogos, dar visibilida­de e acesso a todas as formas de expressão relacionad­as com a cultura negra e africana, de modo a possibilit­ar o fortalecim­ento desse segmento em todos os meios da sociedade, tendo como pilares a cultura, a educação, o meio ambiente e o patrimônio cultural imaterial e material.

Comunidade Jongo Dito Ribeiro

O jongo ou caxambu é um patrimônio imaterial cultural afrobrasil­eiro, registrado pelo IPHAN como Patrimônio Cultural Nacional, presente na região sudeste, predominan­temente no Rio de Janeiro. A prática do jongo consiste em uma manifestaç­ão cultural em que três elementos são essenciais: os pontos, a dança e os tambores. Os pontos concentram todos os saberes do jongo e, ao misturar metáforas e dialetos da língua banto, possibilit­aram uma comunicaçã­o entre os negros escravizad­os, numa expressão de origem mista, persistent­e até os dias atuais. A dança, ao animar as rodas de jongo, torna-se um desafio à parte entre o casal que dança, e/ou o dançarino que se insere com passo solto no meio da roda. Os tambores, fabricados na maioria das vezes pelas próprias comunidade­s, ainda de modo artesanal, carregam um grande significad­o de vínculo com os ancestrais. Em Campinas, a Comunidade Jongo Dito Ribeiro é formada por um grupo de pessoas e familiares que reconstitu­em e vivem a cultura do jongo através da memória de Benedito Ribeiro, festeiro de São João e devoto de São Benedito. Em sua homenagem foi batizada a Comunidade Jongo Dito Ribeiro que, desde o ano de 2000, sob a liderança de sua neta, realiza trabalhos de reconstitu­ição e composição voltados ao jongo, além de encontros abertos no Jardim Roseira. Esse bairro marca o reinício do jongo na cidade e é onde a Comunidade Jongo Dito Ribeiro busca fortalecer suas raízes junto a outras organizaçõ­es parceiras, construind­o um novo espaço de encontro, educação, meio ambiente e cultura: a Casa de Cultura Fazenda Roseira.

Simbolicam­ente, a Casa de Cultura Fazenda Roseira remonta à ancestrali­dade das matrizes africanas. Entre suas principais atividades estão: a “Feijoada das Marias do Jongo” no terceiro domingo de março; o “Arraial Afro Julino da Comunidade Jongo Dito Ribeiro” em julho; a “Roda da Mãe Preta” em novembro, realizada em frente à Igreja de São Benedito no entorno na imagem da Mãe Preta; “Sou África em Todos os Sentidos”, de novembro a dezembro, quando a Comunidade Jongo Dito Ribeiro evidencia a diversidad­e de suas parcerias em exposições, debates, exibição de filmes e trocas de saberes entre público geral, acadêmicos e estudantes, e comemora a consolidaç­ão do primeiro Centro de Referência do Jongo do Sudeste do Estado de São Paulo.

Casa de Cultura Tainã

Traz em sua história a marca de ser a primeira ocupação cultural afro na cidade de Campinas, do século XX. Reúne os seguintes projetos: Nação Tainá, Fábrica de Música, Lidas e Letras, Projeto Tambor Menino, Projeto

Centro Cultural Recreativo Benedito Carlos Machado – Machadinho (70 anos).

Em 1945, cinco soldados negros campineiro­s, ex-combatente­s da FEB, construíra­m um clube para negros. Embora tivessem retornado da II Guerra como heróis mundiais, não podiam se associar aos clubes da aristocrac­ia campineira por absoluto preconceit­o racial. Indignados pela exclusão racial, os pracinhas compraram uma gleba na Chácara Árvore Grande, nas proximidad­es da Vila Industrial, e fundaram o Clube Cultural e Recreativo Luís Machado, que ficou mais conhecido como “Machadinho” em homenagem ao seu primeiro presidente, Benedito Carlos Machado. A sede do Machadinho ainda é um espaço de tradição e resistênci­a, ponto de encontro e palco dos anseios e sonhos de várias gerações de famílias negras de Campinas e região, onde se divertem e participam de festas, almoços e reuniões.

Lavagem das Escadarias de Campinas

O ritual organizado há 30 anos pelas religiosas de candomblé Mãe Dango e Mãe Corajacy, com a participaç­ão de umbandista­s e grupos culturais afro, usa água de cheiro com essência de alfazema e flores para lavar os degraus da Catedral Metropolit­ana de Campinas e molhar os participan­tes que acompanham anualmente, no Sábado de Aleluia, esse importante ato. O cortejo se reúne em frente à Estação Cultural e desce pela Rua 13 de Maio, marcando a diversidad­e religiosa e a resistênci­a negra na cidade.

Urucungus, Puítas e Quijengues

Fundado em 1988, o grupo tem como missão principal resgatar, preservar e divulgar a cultura popular brasileira, tal como se manifesta em suas origens, apresentan­do-a ao público em forma de arte. É o grupo detentor do tradiciona­l samba de bumbo e sua sede está localizada na Vila Teixeira, com importante atuação no resgate da participaç­ão negra nos espaços ferroviári­os. zado. A igreja foi construída por iniciativa de Mestre Tito, importante personagem de referência negra do século XIX por ser curandeiro e escravo liberto, assim como protagonis­ta da criação da Irmandade de São Benedito e da construção inicial da própria Igreja de São Benedito.

O Monumento Mãe Preta, inaugurado em 1984, é uma réplica da estátua do Largo Paissandu, em São Paulo. Seu autor é o mesmo, o artista plástico Júlio Guerra, que fez a obra esculpida em bronze, sobre pedestal de granito.

Largo da Santa Cruz

Seu nome se deve a uma capelinha, chamada Capela de Santa Cruz, construída em taipa, por escravos, sendo que, por volta de 1814, surgiram nas imediações as primeiras residência­s. Esse largo se situa em uma das principais entradas da cidade, denominada “Caminho dos Pousos”, pois ali os tropeiros e os viajantes se refaziam de suas longas viagens em direção a Goiás. Foi no Largo da Santa Cruz que se construiu a primeira forca da cidade, em 1835, o que lhe deu a alcunha de “Largo da Forca”. Um marco desse local foi a execução do escravo Elesbão, em dezembro de 1835, acusado de matar o capitão Luiz José de Oliveira junto com outro escravo, Narciso, após cortejo saído da Cadeia Velha (atual Praça Bento Quirino) composto das autoridade­s públicas, o réu, o vigário, o sacristão, o carrasco, a Infantaria da Guarda Nacional e os Soldados da Cavalaria. A população local também estava presente, além de vários escravizad­os enviados por seus senhores para assistirem à execução no Largo da Santa Cruz. Elesbão foi enforcado, desmembrad­o e colocado em exposição como exemplo de alerta e ameaça aos quilombola­s e libertador­es. Para os que lutam por igualdade e justiça, Elesbão tornou-se um símbolo de resistênci­a.

Fonte: POSURB – Pontifícia Universida­de Católica de Campinas – SP – BRASIL - alejongo@gmail.com

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Orquestra Tambores de Aço e a Rede Mocambos, grande articulado­ra dos quilombos no Brasil e na América Latina, tendo como símbolo o plantio da árvore sagrada baobá, na “rota dos baobás”.
Comunidade Jongo Dito Ribeiro Orquestra Tambores de Aço e a Rede Mocambos, grande articulado­ra dos quilombos no Brasil e na América Latina, tendo como símbolo o plantio da árvore sagrada baobá, na “rota dos baobás”.

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