Corrupção em Sucupira
Trama de 1973, de volta ao Globoplay, era crítica ao Brasil com personagens como o coronel Odorico Paraguaçu
FOI COM O LEMA “VOTE EM UM HOMEM sério e ganhe um cemitério” que Odorico Paraguaçu, interpretado por Paulo Gracindo (1911-1995), venceu as eleições de Sucupira, cidade fictícia do litoral baiano, e deu início a um dos enredos mais consagrados e atemporais da teledramaturgia brasileira, O Bem-amado, novela escrita por Dias Gomes (1922-1999), em 1973, e que volta a aflorar o imaginário popular ao entrar para o catálogo de clássicos do Globoplay. Dando sequência à história, o novo prefeito inaugura o cemitério, mas ninguém morre. Diante do impasse, para não perder o apoio popular, o político autoriza o retorno do matador Zeca Diabo, vivido por Lima Duarte, 90 anos. A ideia era que Zeca matasse alguém e, assim, acontecesse a estreia do cemitério. O que Odorico não esperava é que o homem regressou à cidade natal disposto a ser uma pessoa correta. “Eu me lembro com carinho do Zeca. Ele tinha todos os traços básicos do caráter brasileiro, adorava a mãe, temia muito a Deus, ele era vítima de uma estrutura social viciada, mentirosa”, definiu Lima, que considera o personagem um dos mais importantes de sua carreira. “O Zeca Diabo tinha tanta força, foi feito com tanto amor, cheio de ideias interessantes...”, emendou o ator. Produzida em plena
ditadura militar, a novela fazia uma crítica velada e bem-humorada da política brasileira e, apesar de terem se passado quase 50 anos de sua primeira exibição, ela continua atual, como aponta o crítico de TV e criador do site teledramaturgia.com.br, Nilson Xavier, 52. “Sua principal característica é ser atemporal: peça criada na década de 1960, que virou novela em 1973, depois seriado nos anos 1980 e filme mais recentemente. É uma obra em que o brasileiro reconhece os signos propostos pelo autor, já que a Sucupira de Dias Gomes é um microcosmo do Brasil”, explicou o especialista. Dando spoiler às novas gerações, o cemitério acaba sendo inaugurado pelo próprio prefeito! A morada eterna da ficção, aliás, faz Nilson recordar uma peculiaridade. “A curiosidade de que mais gosto da novela foi narrada pelo diretor, Régis Cardoso, em seu livro No Príncipio Era o Som, publicado em 1999: pelo menos 26 anos se passaram e o terreno escolhido e construído para ser o cemitério da novela, em Sepetiba, na zona oeste do Rio de Janeiro, não havia ainda sido vendido porque as pessoas acreditavam que ali realmente havia um cemitério”, contou o crítico.
ANOS DE CHUMBO
A censura era uma constante nas gravações da novela, afinal, o Brasil vivia um dos períodos mais
ferrenhos da ditadura militar. Palavras como ‘coronel’, ‘capitão’, ‘ódio’ e ‘vingança’ precisaram ser banidas dos diálogos, obrigando a equipe a apagar o áudio de capítulos já gravados. “A insistência era a principal arma de Dias Gomes contra a censura, um recurso que ele usou em toda sua obra na televisão. Cada capítulo tinha de ser enviado à Censura Federal, em Brasília, para avaliação. Como os censores nem sempre eram os mesmos, ele repetia tramas, falas e cenas em capítulos adiante na expectativa de que passassem ‘batido’ por outro censor”, explicou Nilson. O tema de abertura, Paiol de Pólvora, de Toquinho, 74, e Vinicius de Moraes (1913-1980), também foi censurado. No lugar, entrou O Bem-amado, do grupo MPB4. “A fantasia proposta sempre serviu de respiro à dureza do dia a dia. Não creio que o grande público tivesse captado a mensagem que Dias tentou passar, porque a censura interveio muito. Os censores sabiam com quem estavam lidando. Porém, tenho certeza de que se podia ler as mensagens nas entrelinhas”, avaliou Nilson.
ASAS DA LIBERDADE
Interpretado por Milton Gonçalves, 87, Zelão das Asas era um personagem que representava a metáfora da busca pela liberdade política e de expressão. Pescador, ele escapou de um temporal e fez uma promessa: voar até o céu para provar que era um
homem de fé. Zelão passa a novela construindo um par de asas de pano e, por inúmeras vezes, fracassa em seu plano de voar. “Zelão levava dentro dele aquilo que todos nós, brasileiros, devemos ter, esperança de que um dia as coisas estarão melhores”, falou Milton, cujo personagem protagonizou a última cena da história, finalmente, voando. “A novela propunha uma discussão política e ideológica, e falava de um Brasil que, naquele tempo, era muito controverso”, emendou o ator.
POR UM FIO
Zeca Diabo foi o primeiro papel de Lima na Globo. Vindo da TV Tupi, o ator chegou à emissora carioca com a missão de ser diretor, mas as expectativas não se concretizaram. “Eu estava mal na Globo, eles iam me mandar embora”, recordou ele, que na época dirigia a novela O Bofe, de 1973. “Eles iam encerrar meu contrato, porque a novela foi um dos maiores fracassos da Globo, deu tudo errado e eu estava chateado. Aí, pediram para eu ficar mais uns 15 dias, pois eu iria fazer um papelzinho em O Bem-amado, uma coisa pequena, de poucos capítulos, um matador que não mata!”, lembrou o ator, cujo talento ajudou o personagem a cair nas graças do público e se tornar um dos protagonistas da história. “Eu arranjei um bigode de matador, um olhar de matador, revólver de matador, roupas de matador, cavalo de matador, mas não ma