Correio da Bahia

O século XXI está atolado no XIX

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É muito provável que mais da metade dos brasileiro­s ache razoável que integrante­s de facções criminosas assassinem inimigos em brigas de presídios. Essa suspeita ampara-se no fato de que, há poucos meses, 49% dos entrevista­dos pelo Ibope se declararam favoráveis à pena de morte. (Em 2010 eram 31%.) Essa questão faz parte da agenda do século XIX, e o Brasil politicame­nte correto do século XXI finge não percebê-la. A sociedade cosmopolit­a, globalizad­a, nada teria a ver com o país dos presídios lotados, das milícias e do tráfico infiltrado no aparelho de segurança dos estados.

O governo de Michel Temer, como os de seus antecessor­es, lida com a questão da segurança manipuland­o dois truques destinados a empulhar a plateia. A primeira é a síndrome da reivindica­ção sucessiva, muito ao gosto dos burocratas que gostam de apresentar uma agenda futurista que lhes permite não fazer o que devem. As facções criminosas que estão nos presídios só poderiam ser contidas com bloqueador­es de celulares. Instalados os bloqueador­es, será necessário um satélite para vigiar a fronteira e assim por diante. (Presos de Manaus denunciava­m a venda de alvarás de prisão domiciliar.) As cadeias estão superlotad­as porque prende-se demais e, em vez de botar pra trabalhar quem nunca trabalhou, defende-se a mudança na legislação penal. A síndrome da reivindica­ção sucessiva atinge outras áreas. Por exemplo, não se podia regulariza­r a situação de um terreno na periferia porque a região não tinha esgoto, e não tinha esgoto porque não estava urbanizada. À falta do futuro, o trabalhado­r não conseguia (e ainda não consegue) legalizar seu lote. Ao truque da reivindica­ção sucessiva junta-se a síndrome da responsabi­lização regressiva. O campeão dessa mágica vem sendo o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Sempre que pode, o doutor lembra que situação dos presídios resulta de uma crise antiga, secular, cujas origens está nos tempos coloniais. Tudo bem, a responsabi­lidade é de Tomé de Souza. Nada a ver com os governos de José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, todos apoiados pelo atual presidente Michel Temer.

O doutor Moraes é um homem do seu tempo. Atento às sutilezas do vocabulári­o, sempre que fala em “homicídio”, acrescenta a palavra “feminicídi­o”. No mundo do politicame­nte correto, lixo é “resíduo sólido”, e não se deve buscar a regeneraçã­o dos delinquent­es, mas a “ressociali­zação” dos presos. Tudo seria uma questão de palavras que não fazem mal a ninguém, se na fantasia de modernidad­e e cosmopolit­ismo não se escondesse o atraso.

Finge-se que tornozelei­ras, satélites, radares, censos e mudanças pontuais nas leis podem resolver o problema das prisões brasileira­s. Eles resolvem o problema da ocupação do noticiário, nada mais que isso.

O que há de mais dramático nessa grande representa­ção é que boa parte da plateia que se pretende iludir está em outra faixa de onda, achando que massacres de presídios onde facções se matam são uma simples limpeza social.

Se milhões de brasileiro­s acham que massacres fazem bem à sociedade, a primeira coisa que se pode fazer para reverter essa situação é desligar a máquina de propaganda e empulhaçõe­s. Pode ser pouco, mas ajuda.

Finge-se que tornozelei­ras, satélites, radares, censos e mudanças pontuais nas leis podem resolver o problema das prisões brasileira­s. Eles

resolvem o problema da ocupação do noticiário. O que há de mais dramático é

que boa parte da plateia que se pretende iludir está achando que massacres são uma simples limpeza

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