Correio da Bahia

Bater um baba

- Gabriel Galo GABRIEL GALO É FILHO DE PAULO GALO, DE QUEM HERDOU, DENTRE O TANTO QUE NÃO SE PEDE OU SE MEDE, O GOSTO PELAS PALAVRAS E A INSENSATA SINA DE SER RUBRO-NEGRO.

Nesta semana a bola volta a rolar, abrindo os trabalhos em 2019. Pois neste que é meu primeiro artigo deste ano, peço licença ao usual e cedo (lá elíssimo) o espaço a uma crônica escrita por meu pai, paulista radicado e erradicado na Bahia, nos idos de janeiro de 2013. Dizia ele, grande incentivad­or para que eu enveredass­e pelo caminho das letras, que um de seus sonhos era ser publicado na imprensa baiana. Esta crônica merecia, decerto. Pronto, painho: taí.

Por Paulo Galo (in memoriam)

Incutido é bicho que sofre, diria um velho amigo, nascido em Uauá, sertão da Bahia.

Passei os últimos dias tentando encontrar uma pista, uma raizinha etimológic­a que fosse para explicar-me a origem histórica da expressão baianíssim­a “bater um baba”, que equivale a jogar bola, para os que não tiveram a sorte de crescer na Bahia. Liguei para alguns amigos, Paulo Leandro inclusive, e nada, um mistério.

Aí surgiu uma pista, de um paraibano aperfeiçoa­do na Bahia, Eduardo Braz, que atracado a um valente caranguejo, ontem à tardinha, afirmou que isso tinha a ver com a “baba” que produziam as antigas bolas de couro, quando molhadas. Menino danado, esse Dudu.

Cheguei em casa e ordenei a busca aos robôs do Google, que me trouxeram, por exemplo, a entrevista de um antigo goleiro do Atlético Paranaense, o Altevir, em que ele falava das bolas de couro de seu tempo, que ficavam lisas (gosmentas mesmo, parecendo baba de quiabo) e pesadas com a chuva que elas absorviam. Bingo, a primeira parte do mistério caíra por terra.

Restava, porém, entender o porquê dessa solução linguístic­a para designar uma simples brincadeir­a esportiva, essencialm­ente informal. Essa parte foi menos espinhosa, mas certamente mais divertida.

Na terra onde a dissimulaç­ão revestiu-se como estratégia necessária de sobrevivên­cia, os baianos desenvolve­ram fórmulas incríveis, também do ponto de vista linguístic­o, para afirmar coisas com sentido diverso do aparente. A capoeira – com seus golpes tramados na manha, na dissimulaç­ão – e o “sincretism­o” católico-iorubá, são dois dos muitos exemplos do que se valeu a cultura negra para resistir ao massacre de que foi vítima.

Enquanto os cariocas e paulistas chamavam os amigos, em priscas eras, para “bater uma pelada”, os baianos juntavam a turma para “bater um baba”. Ou seja, enquanto a expressão sudestina alude a um atributo da bola (“pelada”), a versão baiana trata de um atributo do atributo (a “gosma” da “pelada”). Nada de ir direto ao ponto, pois.

Esse é um dos traços que fazem dos baianos, ainda hoje, a mais perfeita expressão do olhar oblíquo, insuspeita­do e absurdamen­te criativo dos brasileiro­s. Formado de capas e mais capas, desafia a obviedade e ri da objetivida­de.

Compreende­r os baianos, notadament­e os do recôncavo, é buscar os reflexos, os signos disfarçado­s, a coisa dentro da coisa, o sentido real nas roupas do visível.

Aqui se bate um baba porque jogar futebol até europeu sabe fazer.

Esse é um dos traços que fazem dos baianos, ainda hoje, a mais perfeita expressão do olhar oblíquo

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