Correio da Bahia

CONVERSA DE POETAS

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Nas madrugadas frias do outono baiano, Castro Alves não se conteve diante do braço erguido de Gregório de Mattos, do outro lado da praça, bem ao lado do Cine Glauber, na escuridão e a distância lhe pareceu enxergar outra coisa.

- Diga aí Boca do Inferno, você está me dando dedo ou é impressão minha?

- Não está enxergando direito colega? É o braço levantado, me esculpiram tão pequeninin­ho nesse canto que possa ser que de longe e no escuro a mão no alto pareça que estou dando dedo. E sabe uma coisa? É mesmo. O escultor captou meu pensamento. Nada a ver com você.

- Ainda bem, pensei que fosse inveja sem motivo. Você, Boca, tem o privilégio de ver o mar, já eu estou aqui tomando fresco nas costas quase um século, só enxergo edifícios e casarões velhos e me fizeram com o braço esticado, a tendinite aqui já se instalou há muito tempo.

- A inveja, no meu caso, se justifica. Repare. Deram o nome da Praça a você e os turistas se importam mais com usted do que comigo, não é justo. Também sou um poeta de escol, você me conhece.

- Em compensaçã­o Boca, você está mais protegido. Eu aqui já levei muita mijada no pé, no Carnaval, e quando quis me divertir - o Tati Moreno e Fernando Coelho até colocaram uma mortalha em mim - a imprensa conservado­ra e as academias mandaram tirar. Tive que engolir a desfeita.

- Chora de barriga cheia. Você ganhou homenagens de Caetano, Armandinho e Moraes Moreira. Praça do Poeta e outras referência­s, essas coisas. E eu? Nunca ninguém cantou uma música me homenagean­do, fui preterido por todos os compositor­es, nem o minitrio repara em mim. É uma praga.

-Óbvio,Boca.Vocêfoidiz­er“TristeBahi­a!Ohquão dissemelha­nte”. O povo quer alegria. E se Caetano falou que a Praça Castro Alves é do Povo não foi por mim, é porque rimava com frevo novo. Entende?

- Nem vem com essa. Se for assim, Armandinho e Moraes poderiam ter rimado: “A praça do poeta” com buceta e não com “a gente se completa”. Ai sim eu ia me sentir de certo modo lembrado.

- Esqueça o Carnaval colega. O que importa é que você foi perpetuado em bronze que nem eu, e estamos juntos, ora conversand­o, um frente ao outro. Você pequeninin­ho, tudo bem, não faz mal, a grandeza está na sua obra.

- Papo furado. Você é nome de um município e do principal teatro desta josta e outras coisas e eu? Já ouviu falar na cidade Gregório de Mattos? E ainda me deram o apelido de Boca do Inferno. De boas intenções minha boca está cheia.

- Sabe uma coisa Gregório, você disse tudo, o problema está no seu nome. Mantenha o braço ereto, eles têm que lhe engolir e saber, ou pelo menos suspeitar, que você está dando dedo mesmo.

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