Tradição em risco
Quando chega setembro, um produto costuma ser o vilão dos carurus que alegram Cosme e Damião: o quiabo! Mas, como 2020 não está para brincadeira, uma outra matéria-prima fundamental para os carurus está ameaçando de vez as tradicionais homenagens que todos os anos acontecem no mês dos santos gêmeos ou, no caso do candomblé, os ibejis. O dendê, que enfrenta uma escassez nunca antes vista na Bahia, teve seu preço aumentado em mais de 140% no último mês, o que vai reduzir, e muito, a produção do caruru, seja ele de preceito religioso ou não.
Aliado a isso, a impossibilidade de aglomerar também vai contribuir para não haver confraternizações regadas a comida baiana. Ou seja, o aumento de consumo de dendê, que, segundo os distribuidores, chegava a 30% em setembro, deve cair.
“Vai ser um mês de setembro fraco para caruru, infelizmente. O preço do dendê subiu demais. O camarão também. São dois elementos que não podem faltar. E nos dias próximos a São Cosme e Damião o preço do quiabo também triplica de valor”, observa a cozinheira e baiana de acarajé Angelimar Sousa.
Todos os anos ela recebia algumas encomendas, uma delas para 50 pessoas. Dessa vez, essa mesma encomenda vai ser para apenas 20 pessoas e as quentinhas de caruru serão entregues nas casas. Ou seja, os ‘convidados’ vão receber a iguaria nas residências. “Vou fazer e entregar delivery. O número de encomendas diminuiu bastante e as que confirmaram eu vou levar as quentinhas até as pessoas”, explica.
Se estivéssemos em um ano normal, certamente muita gente já estaria prevendo fazer ou marcar presença em um caruru. “Normalmente caruru você convida uma pessoa e aparece cem. Isso ninguém vai poder fazer esse ano”, observa a cozinheira.
Mas, quem faz caruru de preceito não vai deixar de homenagear os gêmeos e ajudar a população carente, ainda que em menor quantidade. Caso de Maria José Ferreira, que todos os anos faz caruru com 2 mil quiabos. Já no início desse mês, ela cumpriu sua promessa. Não com a fartura que gostaria, mas cumpriu. “Esse ano tive que reduzir. Botei 400 quiabos e não convidei ninguém pra minha casa. Fiz as quentinhas e distribuí para as crianças na rua”.
É o que também vai fazer Tatiane Barbosa. “Esse só vou fazer as obrigações internas no terreiro e distribuir O nosso dendê é diferenciado e tem um preço mais elevado. Mas como o dendê tá tão caro, vale a pena”, afirma Solange Borges, 57 anos, da comunidade do Pinhão Manso, em Camaçari. À frente do projeto Culinária de Terreiro, ela vende uma garrafa de 750 ml de dendê de pilão por R$ 40.
Dessa vez, o tradicional caruru vai ser diferente.
A homenagem aos ibejis vai ser virtual e angariar fundos para a construção de uma casa de farinha na comunidade. Nas redes sociais do Culinária de Terreiro, vídeos vão ensinar a fazer caruru. E no dia 26 - véspera do dia dos homenageados, entre 14h e 17h30, dona Solange vai fazer uma live onde pretende responder perguntas sobre a produção de dendê e de caruru.