Correio da Bahia

MEMÓRIAS *ADRIANA JACOB

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Não foi fácil ver o ferry afundar nas águas da Baía de Todos os Santos. É que em algum lugar de mim vivem as memórias de minha avó e meu avô nas travessias de Salvador para Itaparica. Minha avó me ensinando a vencer o enjoo nos dias de tempestade, quando o ferry estava jogando. "Olha para um ponto fixo no horizonte que melhora, minha filha". Meu avô conversand­o com os antigos tripulante­s, todos conhecidos seus. Afinal, ele fazia aquela travessia desde menino, bem antes dos ferries, no tempo do navio Maragogipe. Mas essa é uma outra história... Cachorro, galo, balaios nas cabeças e pelo chão, mingau de tapioca e milho, beiju de coco enrolado na folha de bananeira, amendoim torrado embalado num pedaço de papel. Eu esticava o pescoço para ver o vai e vem das ondas lá embaixo. O ferry cortando aquele mar de águas verde azuladas. Tentava imaginar quão profundo era, os peixes que nadavam ali. Será que tem água-viva? O verde distante da vegetação da ilha aos poucos ganhando contornos, a medida que a embarcação se aproximava. A gente ia para a ilha - sim, até hoje, por alguma razão, não falamos que vamos para Itaparica. A gente vai para a ilha. Em Bom Despacho, ponto de chegada, entrávamos na fila da kombi. Normalment­e, o carro era antigo e saía cheio de gente, balaios, sacolas e às vezes algum bicho. O cobrador ia encurvado entre dois bancos, quase sobre os passageiro­s, todo mundo já acostumado a estar tão perto. "Vamos descer no ponto da biblioteca". Era uma parada antes do fim de linha e a gente via a condução ir esvaziando aos poucos. Até hoje, a biblioteca é um dos meus lugares preferidos. Gosto de ver que ainda está lá, guardando bem mais que livros, histórias e lembranças de muitos tempos. Mas o ferry submergiu naquele mar que eu nunca soube ao certo a profundida­de, até ler a matéria no jornal sobre o afundament­o: 36 metros. Minhas memórias do mar são bem mais profundas, mas passeiam pela superfície das águas. Gosto ainda de fazer a travessia e ver o ferry cortando o mar, deslizando enquanto vira suavemente para um lado e para o outro. Olho para um ponto firme no horizonte, como minha vó me ensinou, e sinto que, no mistério do tempo, minhas travessias com meus avós serão sempre presentes.

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