Correio da Bahia

Quando a escola não basta

Quem banca? Defasagem no aprendizad­o leva estudantes às filas para aulas particular­es de reforço escolar que custam até R$ 850 por mês

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Di-fi-cul-da-de. No ano em que seria alfabetiza­do, Francisco, de 7 anos, precisou aprender a ler e a escrever com a mediação de uma tela. “Meu filho, e outros estudantes, foram as primeiras crianças a serem alfabetiza­das virtualmen­te. Não desmerecen­do o sistema de ensino virtual, mas nessa fase é bastante complicado para um pai chegar ao final do ano letivo, ver seu filho com boas notas e não ver que ele já está pronto para a série seguinte. Se eu fosse professor, no ano passado, eu teria reprovado ele”, desabafa o empresário Antônio Sá.

O ano letivo de 2020 terminou, mas Antônio é um dos pais que perceberam as lacunas que a pandemia deixou no processo de aprendizag­em do filho. A solução foi ir em busca de um reforço fora da escola para ajudar Francisco a começar a ler e a escrever. O movimento de procura por esse serviço cresceu a ponto de professore­s que costumam dar essas aulas particular­es estarem até com lista de espera, enquanto os estudantes disputam uma brecha na agenda.

A pedagoga Fernanda Marques tem, atualmente, 16 alunos e outros 10 em busca de uma vaga. Ela começa a dar aulas às 6h30 da manhã e vai até às 20h30, inclusive, aos sábados. “O déficit no aprendizad­o está muito grande. Estou com a agenda super, hiper, mega cheia e tem criança, sim, na fila de espera. Sempre fui professora e decidi trabalhar só com reforço escolar em domicílio. Quase todo dia, recebo mensagem no celular me pedindo data. Dou aula até em dia de sábado”, conta.

No caso das aulas ministrada­s por Fernanda, o valor mensal, por cinco dias na semana, chega a R$ 850, mas o preço pode variar a depender da quantidade de aulas. “As dificuldad­es maiores são na escrita e na leitura, principalm­ente de alunos que cursaram o 1º ano do Ensino Fundamenta­l I. Eu utilizo muitos jogos, quebra-cabeças, leiturinha­s e ditado de palavras”.

Já a professora Luciana Limoeiro chegou a criar um espaço na garagem da casa onde mora, no bairro da Graça, para dar as aulas de reforço. “Como é tudo presencial, eu atendo dois alunos no período de 2h cada, em carteiras separadas (com distanciam­ento), termômetro para aferir a temperatur­a na chegada e álcool gel. A sandália fica na entrada, uso da máscara contínuo e sempre que há troca de crianças, as carteiras e os materiais de uso são higienizad­os”.

A hora-aula na Pró Lu Reforço Escolar custa R$ 33. “Com o período da pandemia, houve um aumento da demanda. O que mais preocupa os pais é o engajament­o dos estudantes, a gestão do currículo, o bem-estar social e emocional, a aprendizag­em em si. Vejo crianças chegando muito desmotivad­as e sem concentraç­ão”, completa.

Foi justamente a falta de interesse para fazer as tarefas e acompanhar as aulas que acendeu o alerta de Antônio e o levou a buscar o suporte das aulas particular­es para Francisco. O investimen­to no reforço correspond­e a 20% do valor da mensalidad­e que ele paga na escola. “Sei que o déficit de aprendizag­em de um ano acumula no outro, que se soma no próximo e por aí vai. Hoje, Francisco já faz leitura, domina os números, conta histórias, canta”.

TURNO OPOSTO

A renda principal da professora Gal Perez é o que ganha com as aulas em domicílio. Atualmente, ela acompanha oito crianças, na faixa etária entre 6 a 9 anos. Outros oito alunos aguardam na lista. “O valor da minha hora aula é R$ 70. Antes de iniciar com as aulas de reforço, faço uma avaliação com a criança para identifica­r as dificuldad­es e necessidad­es

novos protocolos internos foram desenvolvi­dos para acompanham­ento de frequência nas aulas síncronas (em tempo real) e resolução das atividades assíncrona­s (offline). “Essa estratégia permitiu a oferta de um atendiment­o especializ­ado para estudantes com dificuldad­es de aprendizag­em e com alguma questão emocional específica”, garante a diretora do Programa Brasileiro da PASB, Andréa Basílio.

O Sindicato das Escolas Particular­es da Bahia (Sinepe-BA) planeja aplicar uma avaliação para identifica­r o que foi realmente aprendido desde o início da pandemia, como adianta o diretor da entidade, Jorge Tadeu. “A avaliação de uma escola não é apenas uma prova. As defasagens serão constatada­s no ambiente escolar. Após o retorno presencial, pretendemo­s fazer essa avaliação e detectar o que foi absorvido e o que não foi”.

ALÉM DO CONTEÚDO

A médica Renata Dias é mãe de três filhos: um de 8 anos, outro de 9 e o mais velho, com 15 anos. Ela conta que procurou a escola e deixou clara a necessidad­e de tentar resgatar o último ano letivo nos próximos anos. “Ainda não tive nenhuma resposta. Os meninos sempre foram excelentes alunos, mas não renderam com as aulas à distância”.

Para o filho maior, Renata pensa em contratar um reforço que possa melhorar o desempenho nas disciplina­s de Física e Matemática. “O Enem não tem jeito, ele tem que fazer. Não tenho dúvida da capacidade das crianças e adolescent­es, meu receio é que não sejamos capazes de nos reinventar como pais, educadores e gestores. O fato é que vamos ter que correr atrás. O foco agora é construir uma forma, buscar os meios”.

A professora titular da Faculdade de Educação da USP (Universida­de de São Paulo), Carlota Boto, chama atenção para o compromiss­o da escola em reconhecer que houve perdas e que essas perdas precisam ser recuperada­s daqui para frente. “Estamos falando sobre a necessidad­e de dialogar com as famílias. Como ensinar o que é essencial? Pensar sequências didáticas que façam sentido”.

O conhecimen­to avança, o que se define como importante e necessário a ser aprendido também, como defende a presidente da Avante Educação e Mobilizaçã­o Social, Maria Thereza Marcilio. “Se conseguirm­os aprender a distinguir o que é informação da ciência e o que é mentira e enganação, se conseguirm­os escutar o que significar­am o distanciam­ento social, as perdas afetivas, as incertezas e transforma­r em matéria de estudo e investigaç­ão, será muito bom”, complement­a.

Esse é mais um conselho da especialis­ta, para os pais que não contratam aulas particular­es. “Traga para esse momento da supervisão, o foi aprendido nas aulas”.

“Amplie os momentos de lazer com o envolvimen­to em jogos educativos. Participe, ao máximo, dessa vida escolar”, completa a especialis­ta.

Nesse caso, é fortalecer o diálogo com pais, alunos e professore­s, como recomenda a doutora em Psicologia Evolutiva e da Educação, professora e coordenado­ra do Núcleo Integrado de Estudos e Pesquisas sobre Infâncias e Educação Infantil (Faced/ Ufba), Silvanne Ribeiro. “Criar espaços para o debate de ideias e estratégia­s de planejamen­to e execução de propostas que dialoguem com toda a comunidade escolar”.

A professora titular da Faculdade de Educação da USP (Universida­de de São Paulo), Carlota Boto, aponta para a necessidad­e de criação de grupos menores de alunos para estimular as trocas. “Ou seja, favorecer mecanismos partilhado­s de aprendizag­em, onde as crianças possam também ensinar umas às outras. Reforço com aulas em turno oposto é outra estratégia”.

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