Correio da Bahia

FLAVIA AZEVEDO É COLUNISTA DO CORREIO E MÃE DE LEO

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Sem querer ser inconvenie­nte (mas, não me importando se for), gostaria de entender que propostas educadores/as trazem, para crianças e adolescent­es, um ano depois da suspensão das aulas presenciai­s, em todas as escolas públicas e particular­es deste país. Não estou falando de esperar a volta, estimular saudades e seguir “do jeito que dá”. Também não de tapetinho de quiboa, me poupem. Muito menos da encenação com termômetro­s nas portarias. Nem da vacinação dos/as funcionári­os/as (a dos/as alunos/as não precisa esperar?), da mentira do distanciam­ento físico e de todas as loucurinha­s que envolvem a perspectiv­a de retorno aos prédios escolares, no meio de uma pandemia, com cerca de mil mortes diárias no país, quando a cepa P1 (a de Manaus, a brasileira) mostra maior letalidade entre crianças e jovens. Para, né? Papo de adultos/as aqui. Inclusive, se possível, tire as crianças da sala.

(Agora, você pode fazer uma pausa pra pesquisar o resultado das escolas que já voltaram “seguindo todos os protocolos de prevenção à covid-19”. Deu certo não.)

Não me interessa a forçação de barra pra atender as bolhas que gritam que “lugar de criança é na escola” porque não suportam mais as próprias crianças em casa. Também não como o reggae de quem defende que precisam existir aulas presenciai­s para que a escola pública

meus avós uma vez por ano.

Se penso na infância com minha mãe, lembro bem de suas balas feitas de açúcar e limão, que colavam no céu da boca. Distraída, eu ficava assistindo a mutação da massa, que se formava a partir do cristal na frigideira acesa no fogão. O termo carameliza­r, só aprendi mais tarde. E então minha mãe moldava as bolinhas de um amarelo vivo e transparen­te entre suas mãos, vermelhas de manejar a massa quente.

Eu gostava de fazer gelar aquelas bólides e deixar que corressem entre a língua e os dentes como se fosse quebrar um deles. Eu imaginava a trajetória dos cometas no universo imenso, enquanto, acidulce, meu pequeno mundo ia se formando e explodindo por dentro. Os coleguinha­s da escola chupavam balas de verdade, descascand­o o colorido de suas Soft, e foi ali que notei pela primeira vez que era mais pobre que eles.

Rainha do improviso, minha mãe também produzia em casa pedras de gelo com sabores de frutas, o que no Nordeste chamamos de abafa banca. Nunca entendi bem a razão desse nome. Gastava-se menos ao encher a cuba de suco de fruta do que na compra de saquinhos plásticos com que se embalava o geladinho. Alguns vizinhos até faziam de suas janelas pontos de venda e cobravam duas ou três moedas.

Aprendi com minha mãe que se pode inventar em casa tudo que não se pode comprar no mercado, tão doce e sofisticad­o quanto. Isso de cozinhar ser um modo de amar os outros, aprendi com ela mesmo. E nada se compara até hoje à manga concentrad­a em cubos coloridos, desaguando lentos na boca, um afluente da infância. Só na adolescênc­ia, começamos a ir à Sorveteria da Ribeira.

Atacávamos em grupo, nossa pequena família, deslumbrad­a e divertida, diante de uma miríade de frutas derretidas em tabocas quentinhas. Atravessáv­amos, em seguida, a rua e nos sentávamos na muradinha, de onde se avista o subúrbio. Todos no luxo, tomando sorvete. Mas o que lembro da sorveteria são os quadros nas paredes. Uma mulher grávida em cenários diferentes e a frase “por uma questão pessoal”.

Qual questão pessoal? Eu pensava, enquanto a língua deslizava no coco espumante. Só bem depois descobri que o artista enigmático era Selarón, um chileno que faria história no Brasil ao colorir as escadarias que hoje levam o seu nome no Rio de Janeiro. A sorveteria cresceu, mudou de dono. Meus pais morreram, vivemos sob o ataque de um vírus. Mas comprei morangos e já esvaziei a cuba de gelo.

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