DAS CINZAS À BABILÔNIA
Salvador O hiato histórico da maior festa de rua trará revoluções ou uma decepção coletiva em 2022?
Somente o Carnaval de Salvador é capaz de produzir um profeta de bermuda, guitarra e bandana. O que seria a canção 100 % Você senão uma profecia evocada por Bell Marques desde 2004? É que entre os absurdos citados na letra - jardim sem flor, praia sem mar, arco-íris sem cor – há um quesito tão impensável quanto os outros, mas que se tornou real: Carnaval sem festa! Quem diria que passaríamos um Carnaval sem aglomeração, sem alegria, sem celebrar o fato de que estamos vivos? Não tem jeito. Já que, como diria o pesquisador e professor Paulo Miguez, o único trio possível esta semana é máscara, confinamento e vacina, nos restam duas alternativas: viver um Carnaval de pura Cinzas e imaginar que o próximo vai ser a Babilônia na Terra. Será?
O CORREIO ouviu artistas, especialistas, foliões-símbolo, médicos, cientistas e gente anônima para entender o que perdemos de capital simbólico e identitário sem o Carnaval, mas também para saber de que forma essas pessoas estão enfrentando o luto e como anteveem o Carnaval pós-vacina. Será que vai existir de fato? Se existir, como vai ser? Bom, comecemos pelo profeta que por 40 anos comandou o Chiclete. Bell prefere crer que a próxima folia “será ainda maior”. Para ele, as cidades, não só Salvador, vão precisar estar preparadas para uma multidão saudosa e disposta a ir à forra. “Acho que o brasileiro, que é tão festeiro, vai querer celebrar em dobro”.
Até lá, vai ser preciso superar a maior Quarta-feira de Cinzas da história. Um doloroso vácuo carnavalesco para quem está acostumado com os quentes verões soteropolitanos. Dos seus quase 60 anos de vida, o diretor de teatro Fernando Guerreiro passou 55, desde meninote, participando ativamente do ciclo de festas populares de Salvador. Guerreiro diz que se sente “desterritorializado”. “A minha sensação é que eu saí de Salvador, como se eu estivesse passando um verão, sei lá, em Brasília. É uma sensação do não lugar, um verão sem identidade. As pessoas estão baratinadas e melancólicas”.
O QUE VEM POR AÍ
Guerreiro evita criar expectativa para não ter decepção. Ele acha que poderemos, sim, ter um boom de participação popular, sensualidade e o diabo a quatro. “Mas, ao mesmo tempo, esse ciclo é tão traiçoeiro e imprevisível que eu não me permito criar essa expectativa. E se acontecer uma mudança de paradigma mesmo? Será que voltaremos a fazer aglomerações de grande porte? Não é pessimismo, é realidade. Não podemos querer voltar ao passado. Não se volta ao passado”.
Organizadora do Carnaval por 30 anos, Eliana Dumêt acredita em uma revolução. Ela viu de perto parte das transformações da festa, das ruas aos camarotes, dos clubes sociais aos blocos. “No pós-pandemia virá um novo modelo. Qual será, não sabemos”, diz Eliana, uma das responsáveis pela profissionalização das nossas festas populares. Para ela, no pós-vacinação, teremos um tripé para resolver: Saúde x Carnaval x Economia. “Caso haja Carnaval em 22, ele tem que acontecer com a maior segurança possível. Esse ano trocamos o Carnaval pela vida. Não ter a festa é a celebração da vida”.
Em uma das suas primeiras músicas gravadas, a Baiana System, um dos símbolos das últimas transformações do Carnaval, pergunta na voz de Russo Passapusso: “como serão os futuros Carnavais?”. Nem eles imaginavam que pudesse haver um Carnaval sem Carnaval. Agora, Russo diz que o desafio é saber lidar com a vida sem essa válvula de escape. “As pessoas vão ter que bolar suas formas pra não viver o vácuo emocional. A minha pergunta agora é: ‘Como será a ressaca dessa expressão pós-Carnaval que teve e não teve? Como vai ser esse vácuo? Como vai ser esse povo sem essa válvula de escape?”.
UMA PANCADA
Doutor em Comunicação e Cultura e pesquisador do Carnaval,
O Correio Folia é uma realização do jornal CORREIO com o apoio da Bohemia Puro Malte e da Drogaria São Paulo. A transmissão é da ITS Brasil e E_Studio.
Imagina um Carnaval sem gente. Os trios sozinhos na rua e as pessoas assistindo a festa pela TV. Um desfile de afoxés com um público na arquibancada. A saída do Ilê só para ver, sem ninguém por perto para sentir. E um bloco sem gente, sem empurra-empurra, sem suor misturado com cerveja e chuva. Difícil? Pois é. Em 137 anos de história moderna do Carnaval de Salvador, muita coisa mudou: a festa começou com clubes e outros elementos foram se juntando: cordões, batucadas, afoxés, escolas de samba, blocos, camarotes. Mas há algo que se mantém firme: a relação das pessoas com o festejo. O folião soteropolitano não quer só ver a festa passar. Ele quer viver.
Já faz tempo que a participação popular comanda o Carnaval de Salvador. Talvez esta tenha sido a primeira grande mudança na festa, suspensa em 2021 de forma inédita. O primeiro Carnaval da história da cidade - com nome de Carnaval aconteceu em 1884. Antes, se chamava Entrudo, uma brincadeira de atirar bolas de cera com líquidos de procedências variadas uns nos outros que desagradou até Charles Darwin, em 1832. De passagem por Salvador, foi atacado com as bolas no Largo do Teatro e se queixou em seu diário: “Difícil manter nossa dignidade”.
Em 1884, 52 anos depois, o espetáculo era bem menos espontâneo - e, talvez, tivesse agradado Darwin. A estrutura da festa foi importada. Da França. “O Carnaval de Salvador foi inventado, criado para se parecer com um Carnaval do sul da França, de Nice, com carros alegóricos, máscaras e a continuação da rua para os bailes”, explica Caroline Fantinel, pesquisadora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia (Ihac/Ufba) e coordenadora do projeto Memórias do Reinado de Momo.
A primeira parte funcionou: o primeiro clube do Carnaval soteropolitano, o Cruz Vermelha, botou seu carro alegórico na rua em 1884 e só saiu de cena de 1962, quando já tinha outro nome: Cruzeiro da Vitória, para não ser confundido com a instituição de ajuda humanitária. Junto com ele, fizeram sucesso o Fantoches da Euterpe e os Inocentes em Progresso. Mas, esse modelo foi se modificando à medida que, no início do século 20, a participação popular se fortaleceu.
“Apesar de tantas mudanças que aconteceram, tem algo
que foi feito no princípio do Carnaval de Salvador reverbera, nos tempos atuais”, aponta.
Ela cita a resistência da cultura afro-baiana como um legado. Os camarotes, em relação aos blocos, guardam elementos dos clubes em relação às pessoas que não podiam participar da festa.
NOVO CARNAVAL
O Centro foi, por muito tempo, o principal palco do Carnaval de Salvador. Mas, na década de 1980, a orla da Barra começou a receber foliões. Em 1983, o CORREIO mostrou em sua edição da Quarta-feira de Cinzas que o Farol da Barra não tinha “aderido” ao Carnaval, como se esperava. No ano seguinte, ainda se falava da pouca animação no local, mas em 1986, a manchete era sobre “delírio total” na Barra.
Para Fantinel, a partir dos anos 1980 um conjunto de mudanças causou grande impacto na festa e nos envolvidos nela, como o trio elétrico a pleno vapor e as tecnologias sonoras, os blocos, o sucesso da axé music e o Carnaval como negócio.
“Mudou evidentemente quando o poder econômico entrou no Carnaval para tirar proveito. Isso mudou muito porque deixou o folião muito limitado”, aponta Chico Mascarenhas. Esse crescimento fez surgir, oficialmente, um novo circuito. Em 1992, a Barra ganhou novo nome: Circuito Dodô. Um pouco mais adiante, o lugar foi finalmente “inaugurado” com a presença de Daniela Mercury, que se instalou ali com trio e camarote próprio.
De lá para cá, muita coisa aconteceu. Os blocos de corda foram protagonistas, abriram espaço para os camarotes e, nos últimos anos, viram a pipoca crescer com trios independentes e movimentos como o Fuzuê e o Furdunço.
“Talvez não seja um resgate, seja uma continuação dessa dinâmica. Formas carnavalescas que pareciam acabadas vão aparecendo e se reconfigurando. Não tem nada fixo, talvez o ponto central do Carnaval seja a descontinuidade do cotidiano, a ideia de que vai se viver dias de descontinuidade, de interrupção da vida cotidiana. É esse o barato do Carnaval”, afirma Luan Alves.