Correio da Bahia

MORAES MOREIRA EODOMDA PALAVRA

Carnaval Canções do mestre deram ritmo à folia; última produção foi o cordel Quarentena

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No mesmo dia em que boa parte dos brasileiro­s entrou em quarentena, Moraes Moreira mergulhou madrugada adentro numa missão que o conduziu por quase toda a vida: tocar e escrever, sem parar. Naquele 17 de março de 2020, no apartament­o da Rua das Acácias, na Gávea, Rio de Janeiro, nasceu o cordel Quarentena. Apresentou a obra ao público no dia seguinte em sua conta oficial do Instagram e não postou mais. Moraes nos deixaria menos de um mês depois, em 13 de abril de 2020.

Em 62 versos, Moraes – que ocupava a cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel – fala um pouquinho sobre diversos assuntos em pauta atualmente: o medo do coronavíru­s e da pandemia, a esperança pela vacina, o pavor da violência e das milícias, os questionam­entos sobre a morte de Marielle Franco, a cisma com o machismo, a misoginia, o preconceit­o e a hipocrisia.

Aos 72 anos, ele não tinha perdido o ritmo: estava ali, vivo, o mesmo artista que abasteceu o Carnaval de canções ao longo de décadas, e cujas composiçõe­s não só fazem parte da memória afetiva de milhões de foliões pelo país, como, ainda que sutilmente, tocam em assuntos pouco festivos, como dor e um passado de escravidão.

“Eu sempre cito Chão da Praça: ‘A nossa dor balança o chão da praça’. Está todo mundo pulando, mas tem uma dor, tem uma violência. Se você for em Chame Gente, também tem aquele verso ‘Escorre o sangue e o vinho, pelo mangue, Pelourinho’. Quer dizer, tem toda uma rememoraçã­o de uma história ali, de escravidão, que aparece de uma forma pontual, quase que fugidia. Moraes era um poeta atento”, aponta o historiado­r Rafael Rosa, mestre em História Cultural e autor do trabalho Na trajetória do Trio, sobre a canção carnavales­ca baiana.

Além de atento, Moraes sempre foi fecundo. Em toda a sua discografi­a, gravou pelo menos 325 canções próprias ou feitas em parceria com nomes como Luiz Galvão, Pepeu Gomes, Fausto Nilo, Armandinho, Antônio Risério, Jorge Mautner, Waly Salomão, Tom

Zé, Paulo Leminski, José Carlos Capinam e até Dominguinh­os. Elas estão distribuíd­as em cerca de 40 álbuns entre 1969 e 2018 – praticamen­te um disco novo a cada ano.

No Carnaval, sobretudo, deixou sua marca. Só nas décadas de 1970 e 1980, Moraes compôs ou gravou mais de 50 canções cuja temática era o Carnaval, mostra um levantamen­to feito por Rosa, muitas delas marcos da festa por gerações. Chame Gente, parceria com Armandinho e gravada em 1987 no álbum Mestiço

É Isso, foi a sétima música mais tocada no Carnaval do ano passado em todo o país.

FÔLEGO

O historiado­r Milton Moura, que estuda o Carnaval, fala de Moraes como um verdadeiro virtuoso, não apenas pelas composiçõe­s que transcende­ram a festa, mas pelo conjunto. “Ele era um exímio tocador de guitarra baiana, era um primor de cantor, de melodista, mas também como intérprete, como músico”, comenta.

A produção foi, acima de tudo, diversific­ada. Armandinho, amigo e parceiro, fala dessa mistura. “Moraes foi uma pessoa que, além de se integrar com a forma ‘trioeletri­zada’ que ele tocava, trouxe o ijexá. Por isso que Caetano [Veloso] falou uma vez que Moraes é o pai do axé. Se você pegar os discos de Dodô e Osmar, é frevo, aí a partir do terceiro a gente bota o frevoxé, o ijexá. A gente começa a diversific­ar e começa a nascer aí o axé”, diz.

Moraes não gostava desse rótulo. “Ele dizia: ‘Olha, nós somos antes do axé...’”, lembra Armandinho. O parceiro se dava ao luxo de discordar: “Eu falava: ‘Mas Moraes, hoje em dia tudo é axé, é uma coisa que engloba. Nós fomos a primeira referência de todos esses artistas do axé’”.

INFLUÊNCIA

Um levantamen­to feito pelo Instituto Memória Musical Brasileira (IMMub) aponta que composiçõe­s de Moraes foram gravadas 1.290 vezes, por ele mesmo e por muitos outros artistas. Chame Gente foi é listada 27 vezes, tanto na voz dele como de uma série de artistas: do próprio Armandinho a Cláudia Leitte, de Caetano Veloso a Carlinhos Brown.

Chão da Praça, grande hit do final dos anos 1970, foi de Moraes a Margareth, Ivete Sangalo e Elba Ramalho. Bloco do Prazer passou por Nara Leão, Fernanda Takai, Elza Soares e Gal Costa. Festa do Interior, gravada por ele em 1987, é um dos grandes sucessos na voz de Gal.

Se 2021 tivesse Carnaval, Moraes certamente faria falta. Mas, com certeza, estaria presente de outras formas – na voz de quem ele inspirou, por exemplo. “Ele nos deixou num ano terrível, mas eu acredito mesmo que, felizmente, o legado que ele deixou deu uma nova uma injeção de ânimo, de riqueza ao Carnaval”, afirma Rosa.

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SÔNIA/ARQUIVO CORREIO* Moraes Moreira, quando se apresentou no Projeto Pixinguinh­a, em 1979

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