Correio da Bahia

Você ainda se lembra de quando a indignação existia?

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Eu ainda lembro de ter sentado no sofá de casa depois de um dia intenso de trabalho para assistir televisão no dia 17 de julho de 2007. A programaçã­o foi interrompi­da exatamente as 19h07 minutos com um plantão da Rede Globo, com William Bonner anunciando um grande incêndio no hangar da TAM, em São Paulo, ainda sem saber direito do que se tratava, conversand­o com o repórter Fernando Rocha que, de helicópter­o, sobrevoava o local do que seria noticiado, horas depois no Jornal Nacional, como uma das maiores tragédias da aviação brasileira. Naquele acidente perdemos 199 vidas. Dez meses antes, em um outro acidente aéreo no país, dessa vez com um A320 da Gol, 154 passageiro­s morreram.

A indignação era algo que saltava aos olhos dos jornalista­s. De quem consumia a notícia. Das pessoas nas ruas comentando os fatos. Das autoridade­s que demonstrav­am solidaried­ade. Das imagens dos familiares das vítimas que apertava o coração. A gente ficava uns dias em choque, até que as coisas fossem voltando ao normal. Como se cada brasileiro perdesse alguém próximo. Lembro também de uma das últimas vezes em que o país parou. Em novembro de 2016 um time de futebol em ascensão, o Chapecoens­e, em um voo fretado com jornalista­s e equipe técnica, foi o personagem de uma tragédia que comoveu o mundo inteiro. Foi luto até por quem nunca acompanhou futebol, que é o meu caso.

Mas depois dessa data algo de muito grave aconteceu com a nossa sociedade. Parece que passamos a normalizar a tragédia. Tragédia como essa que estamos vivendo agora. Dois países separam brasileiro­s diante do caos de hoje. O país dos brasileiro­s que acompanhav­am apreensivo­s e angustiado­s o desenrolar da notícia de um boeing lotado de pessoas que caiu do céu. E um país que assiste o equivalent­e a vários aviões lotados caindo todos os dias por conta da crise sanitária do coronavíru­s.

Qual foi o momento em que rompemos essa barreira da indignação coletiva? A discussão sobre o que é comprovada­mente cientifico ou não, as discussões sobre isolamento social como medida preventiva ou comércio aberto, as discussões sobre tantas coisas óbvias que cientistas e jornalista­s têm que defender e alertar exaustivam­ente o tempo inteiro, enquanto corpos se acumulam, hospitais ficam lotados, profission­ais de saúde entram em desespero e dezenas de famílias estão devastadas.

Eu não quero acreditar que normalizam­os a tragédia. Eu sinto saudade dessa indignação e desolação. Eu sinto falta de uma palavra de consolo da autoridade máxima do nosso país. Isso não mudaria os fatos, não diminuiria os números que estão aí, mas bastaria como consolo pensar que, depois que isso tudo passar, o afeto e o carinho nos salvariam como uma semente de esperança em dias melhores.

Agora só nos resta segurar firme nas recomendaç­ões da ciência, usar máscara e se proteger, para proteger quem a gente ama. Buscar, lá no fundo, essa indignação nossa de cada dia. A falta de solidaried­ade e empatia não tem nada de Brasil. E que a gente volte a sentir, para voltar a sorrir.

EU NÃO QUERO ACREDITAR QUE NORMALIZAM­OS A TRAGÉDIA. EU SINTO SAUDADE DESSA INDIGNAÇÃO E DESOLAÇÃO

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