Dólares, passaporte e sem fila para a vacina
‘Zé Gotinha’ gringo Medo de faltar dose ou de demora para imunização leva baianos aos EUA
Oito horas de voo em média, sem contar com a troca de aeronave, em São Paulo. Por ter cidadania americana e os filhos morarem na Flórida, não foi necessário cumprir o isolamento de 14 dias em outro país, antes de entrar nos Estados Unidos. No final de março, a empresária baiana Flávia Avena, de 45 anos, desembarcou em um sábado e logo na segunda-feira tomou a vacina da Pfizer, em menos de 1h30. A segunda dose, 20 dias depois, não levou nem 10 minutos. Alívio. Finalmente, imunizada.
“Fui comemorar meu aniversário e tomei a vacina, já que não havia previsão de quando minha faixa etária iria chegar na fila de imunização aqui no Brasil. Foi tudo muito rápido. Já completei 15 dias que tomei a 2ª dose e não abro mão de nenhum cuidado. Mantenho o distanciamento, uso máscara, higienizo as mãos”, afirma.
Como Flávia pegou um voo direto para Miami, ela conta que a ida foi tranquila. Já na volta para o Brasil, chamou atenção o movimento nos aeroportos: “Guarulhos (SP) estava um formigueiro. Me chocou bastante. Vi famílias inteiras sentando em mesas que foram interditadas para manter o distanciamento, sem a mínima preocupação com a pandemia”.
A vacinação nos Estados Unidos está atraindo os brasileiros pela pouca burocracia e a praticidade de se imunizar na farmácia ou em uma rede de supermercados da Flórida - como mostrou a coluna Alô Alô, assinada por Rafael Freitas. No Brasil, faltam insumos, vacinas e a fila não anda. Porém, a pandemia e novas variantes do coronavírus avançam. A rejeição da vacina russa Sputnik V pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na última semana, é mais um fator que só aumenta o medo coletivo de que a vacina não chegue para todos em tempo hábil e movimenta o mercado do turismo da vacina.
Essa incerteza foi um dos principais motivos que fizeram Flávia cruzar o continente em busca das doses. Na Flórida, ela poderia escolher, inclusive, o imunizante: se o da Pfizer (21 dias de intervalo entre as doses), Johnson & Johnson (dose única) ou Moderna (28 dias de intervalo). Desde o final de abril, a vacina foi habilitada para todos os maiores de 16 anos sem exigência de comprovação de residência no estado, documento que foi necessário no início do ano, quando a demanda era mais alta.
A partir de segunda-feira (10), Miami disponibilizará vacina contra a covid no aeroporto, e Nova York tem planos para começar a oferecê-la a turistas em pontos da cidade, como o Central Park e a Times Square. Nos EUA, como um todo, 45% da população está imunizada.
Flávia também é diretora de vendas e sócia da agência Tessatour Consultores de Viagens e Turismo, em Salvador. Ela enxerga oportunidade no aumento da procura por pacotes de pessoas que estão indo para fora em busca da vacina, sobretudo, para quem vai precisar passar a ‘quarentena’ em algum país próximo antes de conseguir entrar. Desde o ano passado, os EUA mantêm restrição à entrada direta de brasileiros para evitar a disseminação do novo coronavírus. Só a partir de agosto, que o país vai começar a permitir que estudantes matriculados em instituições de ensino norte-americanas desembarquem em voos diretos sem necessidade do isolamento.
Na agência, a procura dobrou, principalmente, de pacotes para cumprir a ‘quarentena’ no México – destino preferido para aguardar os 14 dias. Mas países como o Panamá e República
mais tem colaborado com o turismo de vacina, conforme destaca o advogado de imigração e fundador da AG Immigration, Felipe Alexandre.
Segundo o especialista, por mais que seja compreensível que todas as pessoas queiram se proteger da pandemia, existe aí um grande debate sobre o turismo de vacinas. “Se por um lado, não há restrição ou punição jurídica para quem sai de outra cidade ou país para se vacinar nos EUA, por outro, há de se deparar com a questão ética, já que as pessoas estrangeiras que se vacinam no país estão, em teoria, fazendo antes de moradores do seu lugar de origem”.
A solução para o impasse está na colaboração de países com doses de sobra, em ajudar outros com maior dificuldade na imunização em massa. “Os Estados Unidos estão se mobilizando para enviar vacinas para a comunidade internacional, especialmente para países que ainda não conseguiram a compra de vacinas por dificuldades econômicas”, acrescenta.
Outro cenário que favorece a tendência é estimulado por destinos internacionais que querem usar as doses para atrair visitantes e, de algum modo, recuperar as perdas que a pandemia provocou no setor. Tanto Rússia como Cuba já sinalizaram a possibilidade de imunizar turistas no futuro. As Ilhas Maldivas, no Oceano Índico, já têm até um plano – sem data prevista para lançamento – de garantir a vacina gratuita para quem vier passar férias. “Os Emirados Árabes é mais um lugar que anunciou a criação de um pacote luxuoso com passagem de avião, estadia em hotel cinco estrelas e, claro, a aplicação da vacina no país”, analisa.
(LONGA) ESPERA
Ao CORREIO, o Ministério da Saúde disse que não tem dados sobre o número de pessoas que estão saindo daqui para buscar imunização fora. Epidemiologista do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz) e colaboradora da Rede CoVida, Naiá Ortelan, lembra que o Governo Federal recusou 11 ofertas formais de vacina de fornecimento de imunizantes contra a covid.
“O Brasil, que até então tinha um histórico de sucesso em relação às campanhas de vacinação – quando erradicou a poliomielite, a rubéola congênita, o tétano neonatal tornou-se extremamente lento e negligente com a saúde pública”, afirma a pesquisadora. A vacina já existe, o que falta é um plano de imunização que, efetivamente, chegue de maneira igualitária a todos os lugares do país, pontua Naiá. “Temos vacina, o que não existe é um plano eficiente para vacinar massivamente nossa população”, completa.