Correio da Bahia

Prestes a se formar em Psicologia, coveiro vê a dificuldad­e de famílias aceitarem a morte na pandemia

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Muitas pessoas voltavam para conversar comigo. Percebi a necessidad­e do acompanham­ento profission­al para aqueles com luto complicado. Não era apenas o suporte religioso. Acompanhei situações disfuncion­ais

Meu propósito é auxiliar as pessoas a ter o conhecimen­to de si

Ofilho não queria acreditar que a mãe tinha morrido. Ela tinha passado quase um mês internada com coronavíru­s em um hospital de Salvador. Por conta do trabalho, o filho não conseguira vê-la nem por videochama­das, tão comum nas UTIs de covid-19. No dia do enterro, em março, no Cemitério Campo Santo, desmoronou.

Outro irmão havia feito a identifica­ção, mas, para aquele filho em questão, o corpo prestes a ser sepultado não era de sua mãe. Com o caixão lacrado, achava que podiam ter errado. No hospital, na funerária - devia ser um erro. Foi quando o auxiliar de serviços diversos Rafael Rios, 28 anos, entrou em ação.

“Conversei com ele, fiz a escuta até que ele ficasse mais calmo. Expliquei que os corpos são identifica­dos no hospital. Pedi para que ele conversass­e com o irmão, que garantiu que fez a identifica­ção. Ele dizia que a única imagem que tinha da mãe era dela viva. Eu respondi que essa era a imagem que ele tinha que alimentar”, lembra.

Rafael trabalha há 10 anos no Campo Santo. No cargo, uma de suas funções lá é a de uma das figuras mais importante­s entre os serviços essenciais da pandemia: o profission­al que enterra os mortos. Em alguns cemitérios, é o sepultador. No imaginário popular, não tem outro nome: é o coveiro.

No Campo Santo, há dois profission­ais que enterram os mortos. São os auxiliares, como Rafael, e os pedreiros, mais diretament­e envolvidos com a parte de manutenção ou de obra da sepultura. Mas, no caso dele, há uma particular­idade: Rafael está a um semestre de se formar psicólogo.

No nono semestre de Psicologia, já era acostumado a lidar com a morte. Diante do desespero das famílias, oferecia algum acolhiment­o - algo que, inclusive, faz parte da profissão. Ouvia, dava uma palavra de conforto. Dialogava para que as pessoas pudessem ressignifi­car o luto.

Já teve esposo batendo no caixão da esposa. Estava transtorna­do. A questão era o caixão, que impedia de ver a esposa

Nós [coveiros] fazemos parte do grupo dos algozes. No hospital, ainda tem esperança. Mas agora que está falecido, eles podem direcionar a raiva do luto para nós Rafael Rios

MAIS MORTES

Mas a pandemia deu novos contornos. Não se tratava apenas de enfrentar mais trabalho ou de se adaptar aos novos equipament­os de proteção individual. Com a covid-19, vieram os enterros sem velório.

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Há 10 anos no Campo Santo, Rafael diz que após formado em Psicologia pretende continuar trabalhand­o a temática do luto

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