Correio da Bahia

A história do coveiro que consola

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“Já teve esposo batendo no caixão da esposa. Eu estava conduzindo o carro eletrônico, mas parei e dei um tempinho a ele, dizendo para ele não ficar muito próximo do corpo. Mas estava transtorna­do. A questão era o caixão, que impedia de ver a esposa”, conta.

O homem deu quatro socos no caixão, até ser acalmado por Rafael. Esse tipo de situação tem sido comum. Com notícias falsas sobre a covid-19, parentes chegam descrentes. Se desesperam com medo de enterrar a pessoa errada.

“Várias questões fazem com que, no momento do luto, eles tenham um estresse maior. Nós fazemos parte do grupo dos algozes. No hospital, ainda tem esperança. Mas agora que está falecido, eles podem direcionar a raiva do luto para nós”, admite.

Nos últimos dois meses, com o aumento de mortes por covid-19 no estado, o trabalho se intensific­ou. O número de enterros fica perto dos 20, em alguns dias. Antes da pandemia, era raro passar de dez, na jornada de 40 horas semanais.

Mas, desde o começo, o trabalho no cemitério foi crucial para que Rafael decidisse estudar Psicologia. Há 10 anos, quando chegou ao Campo Santo, o gerente exigiu que retomasse os estudos. Assim, começou as aulas na Educação para Jovens e Adultos. Ainda no 2º ano do Ensino Médio, fez o Enem. Pensou em cursar História, mas a Psicologia falou mais forte. Foi aprovado em segundo lugar para o curso na Unisba, com bolsa pelo Fies.

“Muitas pessoas voltavam para conversar comigo. Percebi a necessidad­e do acompanham­ento profission­al para aqueles com luto complicado. Não era apenas o suporte religioso. Acompanhei situações disfuncion­ais”, completa.

No Calabar, onde mora com a esposa, os vizinhos o conhecem tanto pelo trabalho no cemitério quanto por ser diácono em uma igreja evangélica. Na faculdade, só os colegas mais próximos sabem da profissão. Depois que se formar, ele pretende continuar trabalhand­o com o luto de alguma forma. Uma de suas vontades é de seguir no cemitério, inicialmen­te em uma função administra­tiva. Depois, sonha com um cargo específico para o acolhiment­o das famílias - algo que não existe hoje. Se continuar na Santa Casa, gostaria também de trabalhar com psicologia hospitalar e cuidados paliativos.

Rafael também não descarta trabalhar na área clínica com especializ­ação em luto. “Meu propósito é auxiliar as pessoas a ter o conhecimen­to de si. Auxiliar, porque ajudar cria uma hierarquia. Coloca você num lugar mais alto que o outro, mas é a pessoa que vai se encontrar e decidir o que é melhor para ela”.

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