Correio da Bahia

‘No cemitério, se muda a forma de viver’

Coveiros de Salvador viram trabalho aumentar e se apegam à família e à religião

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Quando os equipament­os chegaram, o sentimento geral era de medo. Era simbólico: coveiros de todos os cemitérios do estado tiveram que se adaptar aos macacões brancos e às máscaras do tipo PFF2/N95 ao mesmo tempo conviviam com o risco de uma doença que ainda pouco se sabia.

Hoje, pouco mais de um ano depois das primeiras mortes em decorrênci­a da covid-19 na Bahia - e somando mais de 19 mil óbitos -, os profission­ais que cuidam dos mortos enfrentam os próprios dramas e o cansaço de quem não parou de trabalhar para cuidar de si. O luto da pandemia para alguns desses profission­ais não ficou só na realidade das famílias que atendem.

Mesmo agora, que cidades como Salvador já começam a relaxar medidas de restrição, o trabalho continua pesado com tendência de aumento nas próximas semanas. De acordo com projeções do portal Geocovid, iniciativa liderada pela Universida­de Estadual de Feira de Santana (Uefs), se a taxa de contágio continuar exatamente como hoje, em um mês, serão cerca de 100 mortes por dia na Bahia.

A morte não espera nem mesmo o fim do turno de trabalho. Quando recebeu a ligação contando que o cunhado tinha morrido de covid-19, o pedreiro Paulo Cezar Lourenço, 46 anos, estava de plantão. Naquela hora, no Campo Santo, onde trabalha, só restavam ele e outro colega.

“Perdi meu cunhado e eu mesmo tive que enterrar. Ele ficou mais ou menos um mês internado (no hospital de campanha) na Arena Fonte Nova’”, lembra, referindo-se ao episódio há pouco mais de seis meses, ainda antes da segunda onda da pandemia.

Paulo é um dos responsáve­is pelas sepulturas no sistema de gavetas. Naquele dia, não segurou o choro. “A gente tem a consciênci­a de que estamos aqui e, amanhã, podemos não estar. Tempos difíceis”, diz ele, prestes a completar seis anos no cemitério.

EXAUSTÃO

A cada dia, a chegada no trabalho traz uma nova angústia. Paulo sabe o que tem que fazer. Ainda assim, não é incomum ser surpreendi­do por um dia ainda mais trabalhoso. “A gente chega com uma expectativ­a de que vai ser um dia tranquilo, mas não é”, avalia.

Quando a covid-19 invadiu a família, Paulo viu o quanto tudo era imprevisív­el. O cunhado estava na faixa dos 45 anos e era pai de três filhos. Era jovem e estava bem até não estar mais.

Mas nem foi a única perda que ele teve. Paulo também viu um vizinho, amigo próximo, morrer de covid-19. “Pode ser que a gente pegue a covid aqui, mas pode ser que a gente pegue dentro do ônibus lotado. A gente não sabe. Mas já tomamos a vacina”, conta.

Os coveiros de Salvador já tomaram ao menos a primeira dose do imunizante contra a covid-19, de acordo com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS). Segundo o órgão, os trabalhado­res são considerad­os profission­ais de saúde e, por isso, começaram a ser vacinados ainda na fase 1 dos grupos prioritári­os da campanha de imunização.

No Campo Santo, são quatro pedreiros. Por isso, antes da covid-19, Paulo fazia, em média, cinco enterros por dia. Hoje, chega a fazer entre oito e dez, mas já houve dia em que fechasse 12 sepulturas.

Em casa, vê a preocupaçã­o da esposa. Ela sabe que Paulo está exausto - e que continua com medo. “Mas é um pânico global. É uma doença que pegou tanto rico quanto pobre”, diz, citando famosos que morreram, como os cantores Aguinaldo Timóteo e Irmão Lázaro.

Em alguns aspectos, ele acredita que a primeira fase da pandemia foi mais difícil. Tinha que usar o macacão branco praticamen­te durante todo o dia, mesmo com as altas temperatur­as de Salvador. A cada sepultamen­to, havia o medo do processo em si. Havia muita tensão até para tirar as luvas que usavam - a 'desparamen­tação' é um processo em que muitos profission­ais acabam sendo infectados.

Agora, o pior é o cansaço. A

Quando vejo (aglomeraçã­o), digo logo à minha esposa: ele não viu o que eu estou vendo todo dia. Se todo brasileiro tivesse a oportunida­de de trabalhar em um cemitério, mudaria o jeito de pensar e de viverEfyso­n Araújo

eles não se encontram. No máximo, ele passa no portão para cumpriment­ar o pai, que vive com três de suas irmãs.

“Quando vejo algumas situações (de aglomeraçã­o), digo logo à minha esposa: ele não viu o que eu estou vendo todo dia. Se todo brasileiro tivesse a oportunida­de de trabalhar em um cemitério para ver o que tem acontecido, mudaria bastante o jeito de pensar e a forma de viver”.

O momento de desligar do trabalho também foi a maneira que o funcionári­o do Cemitério Municipal de Brotas, Genivaldo Pereira, 36 anos, encontrou para continuar enfrentand­o a pandemia. Logo no início, chegou a mandar os filhos para Entre Rios, para ficar com a família da ex-esposa. Acreditava que era uma forma de protegê-los.

Com o avanço da doença pelo interior do estado, porém, logo voltaram a conviver. No cemitério, atividades básicas se tornaram um desafio. Evitava até beber água, para não ter que tirar os EPIs.

Mas ele também viu o número de enterros aumentar, desde o começo do ano. “Antes, a gente tinha de 6 a 7 sepultamen­tos por dia. Hoje, são 18, 19, somando tudo, não só covid. Até no horário de almoço tem sepultamen­to”, conta.

Por isso, ao chegar em casa, recorre aos cinco filhos. Brinca com eles, conversa com a esposa. “Isso me preenche, o seio da família. Acaba que é o que faz a gente esquecer um pouco do trabalho. A gente aprende a se adaptar à nossa rotina”, completa.

Genivaldo teve covid logo no começo da pandemia, no começo de abril do ano passado. Na época, sentiu apenas sintomas leves. Hoje, ele também já tomou a primeira dose da vacina. A preocupaçã­o, contudo, não acabou. “Mas aqui é o melhor emprego, porque é onde você aprende mais sobre amor e sobre respeito”.

CATEGORIA

Os coveiros de Salvador são representa­dos por mais de uma entidade, a depender de onde trabalhem. No caso dos do Campo Santo, são ligados ao Sindsaúde Rede Privada, por serem vinculados à Santa Casa de Misericórd­ia. O piso da categoria começa em R$ 1,1 mil.

Mas, de acordo com um dos diretores do sindicato, Adauto Silva, há uma compreensã­o geral de que houve aumento de demanda para os trabalhado­res. O piso salarial começa com os auxiliares e, em seguida, com os pedreiros. Eles recebem, ainda, um adicional de insalubrid­ade.

“Os sepultamen­tos aumentaram muito. Por isso, estamos lutando pela taxa de insalubrid­ade máxima para todos os profission­ais da saúde. Hoje, a maioria recebe 20%, mas deveria ser de 40%, pela própria circunstân­cia. A gente vê a quantidade de óbitos que está tendo”.

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