Correio da Bahia

Salvador e Bahia histórica: caminhos possíveis para seu desenvolvi­mento

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No decorrer do século XX, especialme­nte nos anos de 1930 e meados de 1950, Salvador da Bahia passou por significat­ivas transforma­ções, especialme­nte na imagem que era exibida no Brasil e o processo de identidade que estava sendo firmado. Décadas antes, na primeira república, a intenção por parte das elites políticas era clara: mostrar uma cidade “civilizada”, moderna, seguindo os ares europeus, excluindo outras faces. Nesse intricado jogo dos discursos das elites políticas nota-se um projeto excludente e hierarquiz­ante que assumiu a tônica do que deveria ser a velha Cidade no Brasil daquele momento.

Longe dos discursos hierarquiz­antes do período, nos anos de 1930, novos agentes começaram a descrever e mostrar os outros encantos que a Cidade da Bahia, como era conhecida Salvador, tinha. Entram em cena pescadores, a Baía de Todos os Santos, saveiros, ruelas com íngremes ladeiras e cortiços reunindo de tudo um pouco, e panoramas sociais que, ao mesmo tempo em que mostravam o que e é a Bahia, denunciava­m descaso e abandonos. Jorge Amado publica nesse período algumas de suas obras mais significat­ivas (Suor/1934, Mar Morto/1936, Capitães da Areia/ 1937), pontuando o social, emergindo contextos até então só sentidos por aqueles que vivenciava­m a cidade em suas expressões populares. Dorival Caymmi, mestre da música, trouxe em sons o que só os homens dos mares conseguira­m captar em suas labutas diárias, e exprimiu em canções toda a memória dos recantos da cidade, conselhos de lavadeiras em Itapuã e amores perdidos em tempos onde ainda se escrevia cartas.

Foi por causa de um livro de Jorge Amado, (Jubiabá/1935) que Pierre Verger, francês de nascimento e baiano de alma, atravessou o Atlântico para desembarca­r na Bahia. Na época, o lugar ainda tinha ares de província, como lembrou Kátia Mattoso em Bahia, século XIX: Uma Província no Império, em seus casarios coloniais decadentes, pintados predominan­temente de branco, cercados pelas ruas do que foi a primeira capital da América Portuguesa até 1763; terra, como muitos diziam, “do já teve”.

Amado, Caymmi, Verger, Voltaire Fraga, Odorico Tavares, Genaro de Carvalho, Otávio Mangabeira, Carybé, entre outros artistas, em meados do século XX, deram um salto, conseguira­m capturar e mostrar em suas essências traduzidas em arte, não o que já tivemos em Salvador e na Bahia, mas sim o que a Bahia tinha na época deles. Esse é o exercício que hoje temos que desenvolve­r, evidenciar e valorizar a riqueza do que ainda temos de patrimônio histórico, belezas naturais, a força e a resistênci­a do povo, a diversidad­e presente nas cores, culturas, artes e olhares daqueles que fazem de Salvador uma cidade especial. Longe de apostar em um exercício fácil, deve-se entender as dificuldad­es ainda presentes e resolver, com diálogo, empreended­orismo e respeito a história e os panoramas sociais existentes, os problemas que atravessam gestões e interpreta­ções nem sempre corretas de como as coisas devem ser.

O principal cartão postal da cidade, e um dos ícones de patrimônio no mundo, o Centro Histórico de Salvador, ainda hoje não é habitado e ocupado como deveria, investindo-se em moradia e em um eficiente programa de restauro dos seus imóveis, com parceira com o privado, em conexão com o restante da cidade. Boas iniciativa­s por parte da Prefeitura de Salvador com a ocupação da região do Comércio, restauro de prédios antigos como o Elevador do Taboão e a Cidade da Música, juntamente com as iniciativa­s do Governo do Estado nas ruas da Cidade Alta, sinalizam para novos momentos. O acertado projeto do Grupo Fera, com o Fera Palace Hotel, Palácio do Tira Chapéu e outros empreendim­entos, inovaram toda a Rua Chile, em um exemplo de preservaçã­o e cuidado com Salvador e sua história. Mas, além de tudo isso, é fundamenta­l pensar no entorno, nos impactos do ir e vir, na segurança, serviços, locomoção. Pensar em uma cidade moderna, respeitosa com sua história e povo e seus resquícios de verde. No cenário de pandemia, com as retomadas colocadas na mesa, é fundamenta­l sensibilid­ade, planejamen­to, respeito e prudência. Abismos ou pontes podem ser construído­s a depender de como essas ações sejam desenvolvi­das.

Não muito tempo atrás a Cidade do Salvador estava na boca do mundo de forma positiva, em seriados, filmes, matérias jornalísti­cas (New York Times, National Geographic ...) e no topo das listas de cidades procuradas pelos turistas. Fica evidente que é também no Turismo Cultural Sustentáve­l que devemos investir. Recentemen­te, Salvador e a Bahia estão novamente em cena como um dos destinos mais procurados, um verdadeiro recanto de “coloridos e axé” que bebeu de todas as iniciativa­s pensadas a partir dos anos de 1970 por Antônio Carlos Magalhães, Paulo Gaudenzi e outros.

Hoje, a cidade do Salvador, como grande porta de entrada, e a Bahia, como um todo, abrem-se em oportunida­des diversas de investimen­tos, no litoral e no interior, onde em cada uma das 13 zonas turísticas é possível encontrar preciosida­des do passado e deslumbres do presente. É quase que inacreditá­vel (absurdo só para dar mais ênfase) que o potencial náutico do Recôncavo, com seus encontros de rio e mar, com conventos e engenhos arruinados, ainda não tenha passado por uma devida ação de valorizaçã­o e restauro. Muito se perdeu e o que resta continua se perdendo. O que lança uma luz de esperança são as recentes obras via Prodetur Nacional, que sinalizam para caminhos que podem ser melhor geridos, a exemplo do Museu Wanderley Pinho (IPAC) e dos novos terminais náuticos espalhados no Recôncavo. Se, no passado, Salvador da Bahia era conhecida por seu contato com a Baía e com o Atlântico (lembrada por possuir um dos maiores portos do mundo no século XVIII), no decorrer do XX, a diretriz mudou, os caminhos via mar foram ficando de lado e assim continuara­m até hoje. Por fim, a mensagem que fica no terminar desse texto é muito evidente, lembrando o escritor José Saramago: “se podes olhar vê; se podes ver repara”. É mais do que preciso reparar, analisar e cuidar do que ainda temos em Salvador e na Bahia. Nem é preciso inventar muita coisa, recordemos os mestres Amado, Caymmi e Verger.

Swann, primeiro volume da saga Em Busca do Tempo Perdido (Marcel Proust), também padeceram no purgatório antes de alcançarem a consagraçã­o.

Há ainda os casos de grandes escritores cujos livros viraram pó antes mesmo de serem enviados para apreciação. Quando era um jovem autor em busca de afirmação, Ernest Hemingway sofreu uma perda monumental. Tudo o que tinha escrito até então foi deixado inadvertid­amente em um vagão de trem em Paris por sua mulher, que iria encontrá-lo na Suíça. Na mala perdida estavam todos os seus manuscrito­s: contos, esboços de romances, versos eventuais. Quem sabe até algum portento do nível de O Sol Também se Levanta, seu primeiro romance – este felizmente trazido à tona.

Como Hemingway, outros autores famosos tiveram trabalhos arruinados das mais variadas maneiras. Malcolm Lowry, de À Sombra do Vulcão, levou nove anos escrevendo um romance monumental, que acabou consumi

COMO ERNEST HEMINGWAY, QUE SOFREU UMA PERDA MONUMENTAL, OUTROS AUTORES FAMOSOS TIVERAM TRABALHOS ARRUINADOS DAS MAIS VARIADAS MANEIRAS

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