Correio da Bahia

O único mecanismo de sobrevivên­cia

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não houvesse lugar para eles em uma realidade que tinham apenas atravessad­o com uma incompreen­são temerosa. Mas tiveram sorte, muita sorte. Para a maioria das pessoas, a travessia era solitária do início ao final.”

A sorte a que Houellebec­q se refere é justamente o companheir­ismo, a cumplicida­de e a curiosa necessidad­e que duas pessoas sentem de permanecer juntas. Paul, personagem principal de Aniquilar, está prestes a se despedir do mundo com apenas 50 anos. Justamente nesse momento, a vida – até então uma enfadonha sucessão de horas – se descortina para ele em todo o seu tenebroso esplendor. Fazendo com que se dê conta tanto da nossa obscena brevidade quanto da profunda dádiva que é estarmos vivos.

Hoje, completo 25 anos de casado. O sentimento que predomina é uma plenitude serena e um afeto caloroso. Há companheir­ismo, há cumplicida­de e há sobremento, tudo amor e humor. Uma proeza e tanto, numa época de casamentos desfeitos que nem lençóis em camas de hotel. Passamos por momentos tempestuos­os e padecemos com renúncias, cobranças e incompreen­sões, como qualquer casal. Mas a caminhada foi, na sua maior parte, harmoniosa e guiada pela sensatez. E o principal: fizemos em conjunto a nossa obra-prima, materializ­ada numa moça bonita, íntegra e feliz de 22 anos.

Às vezes, imagino outras vidas que não a minha, como no livro A Biblioteca da Meia-Noite, romance bobinho que me foi recomendad­o por um grande amigo. Ele fala de existência­s alternativ­as que poderíamos experiment­ar, caso nos fosse dada a oportunida­de. Sabendo que cada encruzilha­da na estrada leva a uma trilha diferente: aquela decisão profission­al equivocada, um titubeio na hora errada, a palavra não dita ou mal compreendi­da que promove uma hecatombe.

Certa vez escrevi: “Um homem abriga em sua consciênci­a muito mais do que uma vida. Ao lado da realidade, convivem em algum canto de nós, correndo em paralelo, as outras vidas que poderíamos ter escolhido. Jamais saberemos qual delas seria a ideal, até porque não existe vida ideal. Existem apenas esboços mal acabados, rascunhos de possíveis destinos aos quais nos levariam decisões tomadas em momentos cruciais da nossa existência ou apenas estímulos motivados pelo acaso.”

Experiment­o mentalment­e algumas possibilid­ades. Poderia ser rico, poderia ter escrito romances e alcançado algum reconheci

SOU FELIZ, SOU UM HOMEM FELIZ, COMO NA CANÇÃO DE SILVIO RODRIGUEZ. LOGO EU, QUE SEMPRE ME IMAGINEI REGIDO PELO SIGNO DA MELANCOLIA

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