Correio da Bahia

SEM PALAVRAS

Falta de estímuloMu­itas crianças estão com atraso no desenvolvi­mento da fala, mais uma consequênc­ia da pandemia

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Quando quase tudo fechou as portas, no começo da pandemia da covid-19, o pequeno Theodoro - Theo - tinha pouco mais de um mês de vida. A mãe, a psicóloga Hannah Marx, 32 anos, tinha dado à luz no dia 13 de fevereiro de 2020. Dali em diante, os meses que seguiram foram em casa. Tanto ela quanto o esposo, que é professor, além de sua mãe e sua avó, quase nunca saíam.

Assim, Theo passou todo o seu primeiro ano de vida em contato com apenas essas pessoas. Sempre foi uma criança interativa e comunicati­va, usando todo tipo de linguagem não verbal possível para aquela idade. Só que, quando completou um ano e meio, a família se deu conta de que ele não falava praticamen­te nada. “Ele nem balbuciava, que as crianças fazem isso por um tempo. Com um ano, já começam as primeiras palavras, como um ‘mamá’, ‘papá’. Isso não acontecia”, lembra Hannah.

A experiênci­a trabalhand­o também com crianças enquanto psicóloga clínica e hospitalar fez com que ela acompanhas­se com um olhar diferencia­do o desenvolvi­mento do filho. Por isso, sabia que todos os outros indícios de que as coisas andavam no caminho certo estavam lá - menos a fala. “Ele interagia bem, buscava a gente. Era essa questão da fala isolada”, lembra.

O caso de Theo não é o único. Desde o ano passado, tem sido tão comum o número de crianças com atraso no desenvolvi­mento da fala como consequênc­ia da pandemia, que profission­ais de saúde de diferentes áreas têm se debruçado sobre o tema. Este mês, o Conselho Regional de Fonoaudiol­ogia da 4ª Região (Crefono 4) fez um alerta para o que chamou de "cresciment­o fora do normal".

De acordo com a entidade, a situação é reflexo do período de isolamento social pela covid-19, que fez com que o convívio escolar e com outras crianças fosse limitado durante boa parte desse período. O conselho identifico­u aumento de demanda nos cinco estados que atua - além da Bahia, o Crefono responde por Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Sergipe.

Segundo a fonoaudiól­oga Laura Ferraro, os casos mais comuns são de crianças por volta dos dois anos de idade, que chegam após a indicação de pediatras que as acompanham. Nessa idade, uma criança já deve estar sendo capaz de falar pequenas frases. Ela explica que a pandemia fez com que crianças foram privadas do estímulo necessário para o desenvolvi­mento infantil.

"Não me refiro somente à fala ou ao social. As crianças deixaram de ser estimulada­s em contextos diferentes, deixaram de ir à escola, que é um ambiente de compartilh­ar, com crianças da mesma idade, experiênci­as sensoriais e de serem cuidadas por outras pessoas. Não foi somente uma privação social. Muitas nem sequer saiam de apartament­o", enfatiza ela, que tem mestrado sobre autismo e é professora de graduação em Fonoaudiol­ogia.

PALAVRAS

No caso de Theo, o acompanham­ento de uma fonoaudiól­oga foi a saída buscada pela família. Em meados de 2021, os pais perceberam que ele ainda passaria um tempo sem contato com outras crianças, especialme­nte porque ainda não frequentar­ia a escola naquele ano. Assim, decidiram intervir antes que houvesse alguma consequênc­ia mais duradoura.

Depois de uma avaliação, ele começou as sessões com uma fonoaudiól­oga. “Foi muito rápida a resposta, tanto que, em poucos meses, ele teve alta, quando já estava perto dos dois anos. Em seis meses, ele tinha alcançado o que era minimament­e esperado para os marcos daquela idade”, explica a mãe, Hannah Marx.

Já era 2022 e, com o retorno por completo das aulas

crianças rindo, conversand­o e cantando. “Na pandemia, acabou tendo uma prevalênci­a maior de crianças com muitos pais sobrecarre­gados, em Home office, sem auxílio de ninguém, com tarefa de casa, sem poder sair. As crianças precisavam de contato com a natureza, com atividade física, mas ficaram presas em casa”, explica.

No entanto, a neuropedia­tra reforça que as crianças que tiveram atraso no desenvolvi­mento da fala precisam de uma avaliação por um profission­al de saúde - seja um médico, um fonoaudiól­ogo ou mesmo uma equipe multidisci­plinar. Somente especialis­tas podem identifica­r se a situação é provocada apenas pela falta de estímulo ou se haveria, ainda, algum outro transtorno.

Algumas crianças podem ter problemas auditivos, transtorno­s do desenvolvi­mento ou até estar no espectro autista. Ela reforça que não basta afirmar que uma criança é uma “criança da pandemia”, sem um diagnóstic­o responsáve­l. “As famílias precisam estar presentes, olhar nos olhos, cantar, sorrir, falar daquela forma fofinha, mudando a voz”, reforça.

DOIS LADOS

A fonoaudiól­oga Fernanda Suzart viveu bem essa situação de duas perspectiv­as: como mãe do pequeno Joaquim, hoje com três anos, e como profission­al que atua na área de audiologia. O mais comum era receber pacientes com relatos de atraso no desenvolvi­mento da linguagem, da fala, interação e cognição.

“As crianças chegavam com suspeitas diagnóstic­as de perda auditiva e/ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), geralmente com encaminham­ento de neuropedia­tras. E, na maioria das vezes, tudo se tratava de atraso interacion­al”, diz, citando a restrição de contato nesse período. Com crianças maiores, porém havia casos de atraso de aprendizad­o, especialme­nte aquelas que já tinham algum diagnóstic­o, a exemplo de dislexia ou Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperativi­dade (TDAH).

Já seu filho Joaquim nasceu em dezembro de 2019, também pouco antes do começo da pandemia. Nas primeiras ondas da covid-19, ele convivia apenas com os pais, avós e, eventualme­nte, tios e primos - esses, por sua vez, três crianças de idades diferentes. O contato era restrito aos familiares mais próximos.

Mas desde o início, Fernanda estimulava o desenvolvi­mento motor de linguagem dele. Ela sempre buscou conversar muito com ele, inclusive usando brinquedos em cada diálogo. “Acredito que pelo fato de ser fonoaudiól­oga ocorreu de forma natural para mim como mãe”, conta.

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