Pamonhas do amor, graças a Deus
Eu realmente sinto muita falta de proteção institucional à memória, saberes e tradições culinárias, como as merendas de tabuleiro, tão lindamente defendidas e salvaguardadas pela amiga Leila Carreiro (Dona Mariquita) aqui em Salvador.
O que se vê - assim como as casas demolidas, as árvores decepadas, os bichos ensandecidos e os indígenas desnutridos - essas tradições rolam ladeira da extinção abaixo. Quer ver, repare na proporção de barracas de salgadinhos que se estendem pendurados pelos gradis federais dos pontos de ônibus para o número de vendedores de taboca, quebra-queixo e até mesmo baianas de acarajé. Mas esse textão aí de amnésia cultural não é pra agora, porque hoje eu quero falar “apenas” sobre um dia na vida de mais um vendedor ambulante e invisível (beijo Baiana System) que ainda resiste na difícil missão e favor que faz à memória das tradições culinárias brasileiras, produzindo e vendendo diariamente as melhores pamonhas de milho e carimã que já tive o prazer. O nosso herói é gente do Conde: Carlinhos de Dona Gracinha e do recém-finado Joaquim, que Deus o tenha, “graças a Deus”.
Eu me tornei camarada de Carlos há exatos 8 anos quando, convidada para criar e executar um cardápio para o vernissage da exposição Carybé Ilustra Jorge Amado no foyer do TCA, agucei ainda mais o’zoim para as merendeiras de rua para criar DORA - o gosto doce do menu – feito com as pamonhas de Carlos em calda de doce de leite cremoso diluído num pouco de leite, que nunca mais saiu do menu Pitéu, especialmente depois que ganhou topinho de amêndoas laminadas tostadas. Era preciso não apenas inspirar-me no regozijo das merendas de Jorge, mas também convidar o merendeiro ao banquete de corpo e alma.
Carlos podia estar vendendo salgadinho? Podia. Mas ele escolheu pular da cama todos os dias às 5h da manhã e se jogar do Lobato até o Campo Grande, com duas paradas semanais na Feira de São Joaquim para comprar milho verde, carimã, coco e amendoim (para cozinhar como mais uma opção de merenda sincera). De lá ele brota no box que aluga por R$30/semana no finado Beco dos Artistas, onde guarda o seu carrinho e produz a sua merenda. São 50 pamonhas de milho e 30 de carimã todo santo dia. Depois pausa para almoçar e segue infalível empurrando o seu carrinho até o seu ponto ao lado da banca de jornal da Escola de Belas Artes no Canela. Pode chegar de segunda a sexta à partir das 15h e dizer que o viu no jornal – não que vá se compenetrar.