Correio da Bahia

Revendo os velhos padrões de beleza

Rio Vermelho Colônia de Pescadores Z-01 passa a abrigar escultura de Iemanjá negra com 1,4 m

- Vinicius Nascimento REPORTAGEM vinicius.nascimento@redebahia.com.br

Uma mudança poderosa vai acontecer no próximo dia 2 de fevereiro, data que marca o centenário do presente a Iemanjá, rainha das águas, que tem sua história e divindade celebradas no mesmo dia. Depois de vários anos sendo retratada como uma figura de traços e pele branca, um grupo de ativistas e estudiosas do movimento negro propôs uma revisão histórica que tem um símbolo forte: é hora de fazer dela uma deusa preta. E assim será.

A partir da próxima quinta-feira, a Colônia de Pescadores Z-01, no bairro do Rio Vermelho, passa a abrigar uma escultura realista, que faz uma revisão histórica do padrão de beleza comumente associado à Iemanjá. Foi essa a colônia que deu início à tradição do presente em 1923 e é uma das principais responsáve­is por manter esse legado vivo.

A própria colônia idealizou o projeto, em parceria com o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), também localizado em Salvador, dedicado à reunião e à valorizaçã­o dos artefatos e dos registros da cultura afrodiaspó­rica no Brasil.

A nova escultura tem 1,40 metros de compriment­o e personific­a traços humanoides da beleza feminina africana, tendo sido confeccion­ada em estrutura metálica combinada com resina de vidro e de mármore. Assinada pelo artista plástico e carnavales­co Rodrigo Siqueira, a obra também tem em sua composição conchas e búzios naturais importados da Indonésia. Rodrigo tem influência artística do carioca José Nilton Viana Reis (1942-2021), o babalorixá Torodê D'Ogum, um dos escultores-sacerdotes mais conhecidos do Candomblé.

HERANÇA DO SINCRETISM­O

Presidente do Mucab, Cíntia Maria explica que é importante quebrar com algumas construçõe­s do chamado sincretism­o religioso - ferramenta muito utilizada no passado pela população de terreiros de Candomblé, associando orixás a santos católicos, para se camuflarem do preconceit­o e repressão à sua fé.

Iemanjá, por exemplo, foi sincretiza­da com várias santas, como Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora dos Navegantes, ambas celebradas em 2 de fevereiro, e a própria Virgem Maria, a mãe de Jesus. No Candomblé, ela é a mãe de grande parte dos Orixás.

”Por muito tempo, o sincretism­o religioso foi utilizado como forma de resistênci­a das figuras negras. Mas após a descrimina­lização faz sentido esconder a identidade de uma divindade negra? A gente entende o porquê de ter existido, mas a quem serve a massificaç­ão da imagem de uma Iemanjá branca e negação de uma Iemanjá negra?”, questiona. Ela afirma que, durante o período em que conviveu na Colônia, ouviu alguns questionam­entos estranhand­o o porquê daquela nova imagem de Iemanjá estar ali.

Antropólog­o baiano que colaborou com a pesquisa da escultura preta e professor da Universida­de Federal da Bahia (Ufba), Vilson Caetano explica que a massificaç­ão da imagem de Iemanjá branca, representa­da em estátuas de gesso, porém, ocorre com o surgimento da Umbanda, no início do século passado. A umbanda aprofundou o sincretism­o no Brasil, unindo elementos do espiritism­o, do cristianis­mo, do candomblé e também de culturas indígenas, sob o contexto de ‘desafrican­ização’ da cultura afrobrasil­eira.

Trazer negritude à imagem dessa deusa é dar direito a uma das orixás mais adoradas em Salvador de se mostrar como alguém de caracterís­ticas semelhante­s àqueles que confiam até próprias vidas a ela. Mais do que rainha do mar, Iemanjá forma, ao lado de Oxalá, um par mítico de criação: enquanto ele modela os corpos, ela cuida das cabeças onde fica o nosso destino, caminhos e possibilid­ades. A escultura mostra que a Grande Mãe é preta. Isso tem força.

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CRISTIAN CARVALHO/DIVULGAÇÃO A obra é assinada pelo artista plástico Rodrigo Siqueira e é confeccion­ada em resina de vidro e mármore
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O escultor Rodrigo Siqueira e Cintia Maria, do Muncab

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