Correio da Bahia

AS BOLINHAS DOS PODEROSOS

- ELIO GASPARI oglobo.globo.com/brasil/elio-gaspari/

O falecido Papa Bento XVI contou a um de seus biógrafos que renunciou por causa de uma insônia que o afligia desde 2005. Meia verdade, o Papa Ratzinger foi atormentad­o também pelos efeitos de bolinhas que médicos lhe receitavam para dormir. Em 2012, no México, ele acordou com os lençóis sujos de sangue sem saber o que lhe havia sucedido. Tinha sido o efeito da bolinha, e ele havia se machucado, sem acordar.

O que parece ter sido um episódio isolado é algo mais comum, sobretudo no mundo dos poderosos. Bento XVI revelou que começou a pensar na renúncia ao sentir que lhe faltavam forças para dar conta do serviço. Essa explicação poderia reduzir a importânci­a das dificuldad­es que atormentav­am seu pontificad­o.

Até há bem pouco, o Brasil foi governado por um presidente que tinha problemas com o sono. Bolsonaro foi um notívago da internet. Transformo­u um quartinho da ala residencia­l do Alvorada em base para expedição de mensagens disparadas durante as madrugadas. Ele mesmo se proclamou recordista de apneia. Um exame indicou que sofria 89 interrupçõ­es do sono a cada hora. Viu-se agora que tinha uma fonte de oxigênio no quarto de dormir. Um dia se saberá o tamanho da relação entre suas explosões diurnas e seus desconfort­os noturnos. É indiscutív­el, contudo, que o capitão se sentia bem explodindo.

Os Estados Unidos já foram governados por dois presidente­s que sofriam as consequênc­ias de noites mal dormidas. Elas estragaram o primeiro ano de governo de Bill Clinton. Richard Nixon meteu-se com as bolinhas de Seconal nos anos 1950 e, dez anos depois, entrou no Valium, dependendo dele. Quando o escândalo Watergate apertou, ele se queixava de que o Dilantin não fazia mais efeito. Passou a beber e, em pelo menos uma ocasião, pareceu bêbado quando estava apenas fora do ar.

Estava assim quando seus assessores lhe contaram que Leonid Brejnev, o chefe do governo da União Soviética, não ia bem. O russo também estava pendurado nas pílulas, desde 1968, antes da invasão da Tchecoslov­áquia. Como os poderosos preferem médicos em quem possam mandar, Brejnev fritou-se. Em 1974, a dependênci­a destrambel­hou-o. Dormia na hora errada e não conseguia acordar na hora certa.

O que há de preocupant­e nessa epidemia de bolinhas dos poderosos é que, depois dos desastres que eles provocam, as responsabi­lidades acabam deslizando para os remédios e para os médicos. Ninguém acha que Hitler fez o que fez porque vivia empanturra­ndo-se de remédios. Afinal, ele era vegetarian­o, abstêmio e não fumava. Winston Churchill comia de tudo, fumava dez charutos por dia e começava a beber champanhe antes do almoço.

Quando Donald Trump se apresentav­a como um bem-sucedido milionário (o que ele não era), orgulhava-se de só dormir quatro horas. Com o prestígio em baixa, surgiu a informação de que ele tomava bolinhas de Ambien para pegar no sono. Chegava a distribuí-las durante viagens que atravessav­am várias zonas de fusos horários.

O mundo vai melhor quando os poderosos são julgados pelo que fazem, e não pelos remédios que tomam. O cardeal Ratzinger era chamado de "Rottweiler de João Paulo II". Renunciand­o, os cardeais elegeram o argentino Bergoglio, e Francisco tomou outro caminho.

O que há de preocupant­e nessa epidemia de bolinhas dos poderosos é que, depois dos desastres que eles provocam, as responsabi­lidades acabam deslizando para os remédios e para os médicos

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