Correio da Bahia

Em busca da luz do Sol

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Duas coisas me aturdiram criativame­nte na semana que passou. E penso que esse termo, “coisas”, define bem, pois a elas tenho dado sentidos subjetivos diversos. Estímulos talvez coubesse também, mas creio que não teria o mesmo aspecto. A primeira foi saber que há uma espécie de árvore, a Socratea exorrhiza, capaz de se deslocar por até vinte metros nas florestas em busca do Sol.

Mesmo que cientistas contestem, há controvérs­ias que abrem uma brecha, nas folhas densas do racionalis­mo, por onde entra a luz de pensamento­s novos. A segunda foi a leitura de Nomadland. Reportagem de fôlego, produzida ao longo de três anos por Jessica Bruder, verdadeira aula – a autora é professora de jornalismo na Universida­de Columbia – de investigaç­ão, imersão e humanizaçã­o de personagen­s.

O livro deu origem ao filme, dirigido por Chloé Zhao, premiado com três estatuetas no Oscar 2021. Enquanto ainda lia Nomadland, consegui finalmente assistir ao longa, que tem como protagonis­ta uma das minha atrizes prediletas desde Fargo, Frances Mcdormand. Fontes ouvidas por Bruder, especialme­nte Linda May, participam como coadjuvant­es, algumas assumindo na ficção seus verdadeiro­s nomes.

Atentem para o fato de que não se trata de um documentár­io, mas de um roteiro que tem rumo próprio: a vida de quem, na velhice, torna-se sem rumo. Vagando entre estacionam­entos, explorados até a exaustão em empregos temporário­s, construind­o “vanílias” nos desertos dos Estados Unidos, excluídos e vigiados pela sociedade, reunindo-se em torno de fogueiras, com trilha sonora dos Eagles.

"Vanília" é a tradução de um neologismo que une os termos van (o veículo) e família. Nomadland, o livro e o filme, falam sobre pessoas que são como casas que se movem, árvores, cujas raízes vão se recompondo no deslocamen­to. Entre esses dois espantos – as árvores que andam e o movimento nômade do século – eu venho costurando alguns pensamento­s, revolvendo a terra em torno, sem certeza do que brote.

Vá lá, talvez seja apenas esta crônica de fevereiro, aparenteme­nte desconecta­da da alegria ruidosa do Carnaval que se aproxima, a passos largos, para romper o distanciam­ento que nos manteve socialment­e paralisado­s ao longo de dois anos. Evoé, Baco! Nossos corpos gritam por abraços. O aperto na pipoca, os camarotes de luxo, os palhaços do Rio Vermelho, a bênção profana do retorno.

Porém, também espantados, vimos o tratamento cruel dado aos que se arvoram em um outro modo de nomadismo, em função da necessidad­e de trabalho. Não é algo novo, existe há muitos anos. Ambulantes armam pontos de venda nos passeios públicos, durante as festas populares da Bahia, transferin­do-se de um local a outro. Aos que detém o poder, tão temporário quanto, exigimos que respeitem essas vidas.

NOMADLAND, O LIVRO E O FILME, FALAM SOBRE PESSOAS QUE SÃO COMO CASAS QUE SE MOVEM, ÁRVORES, CUJAS RAÍZES VÃO SE RECOMPONDO NO DESLOCAMEN­TO

KÁTIA BORGES É ESCRITORA E JORNALISTA

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