Correio da Bahia

Lembranças de um carnaval

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Na fotografia colorida, captada por uma câmera analógica e revelada numa minilab da vida, eu e minha irmã vestimos mortalhas vermelhas que quase cobrem os pés. Nossas fantasias de Carnaval eram feitas em casa, produzidas por nossa mãe em sua máquina de costura. Aos seis anos, eu ainda cabia inteira entre o pedal de ferro e a caixa de madeira. Foi ali que aprendi a ler, juntando uma letra na outra.

Imagino com que apuro nossa minha mãe costurou aqueles tecidos de cetim, comprados à custo numa loja da Avenida Sete, após tomar as medidas de nossos pequenos corpos com moldes recortados em papel de jornal. Pareço um pouco constrangi­da nesse retrato? Admito que sim. Mas, talvez fosse apenas o calor de fevereiro ou, quem sabe, esse eterno desajeito diante da alegria.

O segundo mês de cada ano reservava para nós uma euforia que só era permitida às crianças pobres em determinad­as datas do calendário, quando se podia dançar em público, ouvir música no volume máximo, ficar acordada até mais tarde e comer as besteiras vendidas nas ruas. Essas novidades festivas, no entanto, tornavam-se estranhame­ntos, quebrando a rigidez de um orçamento restrito.

Morávamos na parte baixa da cidade, mas, nessa imagem, estamos em algum local do centro. Certamente, em algum ponto do antigo circuito dos trios elétricos, que então era único. Penso que seja possível, por exemplo, que esse registro tenha sido feito nas proximidad­es do Campo Grande, onde os camarotes de madeira da prefeitura sempre pareciam prestes a desabar, sacudidos por foliões aos pulos.

Na tal fotografia, a minha irmã olha com elegância para o fotógrafo, ou a fotógrafa, não lembro. Distraída de tudo, esparramad­a numa cadeira de plástico, eu torço um pouco os meus lábios, como se estivesse desconfort­ável por estar no meio da multidão. Devíamos ter no máximo dez, talvez onze anos, e parecemos exaustas, flagradas numa brevíssima pausa da festa, com nossas mortalhas vermelhas.

Também não recordo se dançávamos. Nunca fui boa em coordenar os movimentos. Para mim, o Carnaval é uma abstração. De vez em quando, alguém da família alertava para tomar cuidado, enquanto, levada pela mão, eu ia olhando toda e qualquer coisa colorida, estivesse no chão ou no alto. Não havia luxo, mas como durava aquela sensação, que era como estar num parque de diversões por uns dias.

O SEGUNDO MÊS DE CADA ANO RESERVAVA PARA NÓS UMA EUFORIA QUE SÓ ERA PERMITIDA ÀS CRIANÇAS POBRES EM DETERMINAD­AS DATAS DO CALENDÁRIO

KÁTIA BORGES É ESCRITORA E JORNALISTA

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