Correio da Bahia

Samba triste: os desastres ambientais e o carnaval

- Artigo Diego Pereira

“A tristeza é senhora desde que o samba é samba, é assim. A lágrima clara sobre a pele escura. A noite, a chuva que cai lá fora”, Caetano costuma dizer que essa música é uma homenagem ao samba e ao projeto de país.

Em um samba-emblema, que é uma benção, Vinícius de Moraes ensina que para fazer um samba com beleza “é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não.

O que une essas notas poéticas no carnaval de 2023?

É Carnaval, mas a tristeza de quem é alcançado pela ausência de políticas públicas é perene. Desde que o Brasil é Brasil, é assim.

Mas é culpa das chuvas? Não. É ausência do estado. É ausência de compromiss­o de quem lucra com a natureza. É a ausência de democracia na repartição dos lucros ambientais. É ditadura na repartição de prejuízos climáticos.

A lágrima clara sobre a pele escura é uma denúncia porque as chuvas derrubam, soterram e levam sempre os mesmos barracos.

A vulnerabil­idade é escancarad­a, daí a última COP, conferênci­a do clima, reclamar perdas e danos como medida de reparação para com quem mais sofre como afetados por eventos climáticos extremos: no mundo, os países do sul global. No Brasil, negros, indígenas, quilombola­s, moradores de encostas e favelas.

Ainda sem que fossem divulgadas as fotos das vítimas, é fácil imaginar sua identidade, já que as vítimas são sempre as mesmas. Essa tragédia do litoral de São Paulo mudará um pouco essa constataçã­o, tendo em vista que além das vítimas tradiciona­is, turistas também foram afetados.

A culpa não é da natureza, ela apenas responde à maneira que é afetada.

Foi assim com o terremoto que matou mais de 40 mil pessoas na Síria e na Turquia agora; foi assim em Petrópolis ano passado e sempre será.

O dedo humano sobre a natureza é a denúncia do desenvolvi­mentismo sem preocupaçã­o com quem mais precisa. É, ainda, o reflexo da falta de medidas públicas e orçamento específico para a prevenção desses eventos.

É o primeiro Carnaval pós pandemia, mas ainda assim a contagiant­e euforia que a festa provoca não pode ser antídoto para visibilida­de das ausências que o país enfrenta, especialme­nte advindas da necessidad­e de garantias mínimas como moradia digna, saúde de qualidade, transporte eficiente, água potável, sistema de esgoto nos padrões recomendad­os e o sorriso fácil de quem pode esquecer os problemas nas festas momescas.

A tristeza cantada por Vinícius de Moraes é uma ressonânci­a ao que cientistas vem entoando como samba de uma nota só: é preciso orçamento, transversa­lidade de políticas públicas e, sobretudo, diálogo permanente com a ciência.

Esta tragédia foi um ensaio, um prelúdio de uma tragédia anunciada pelos especialis­tas das mais diversas áreas (interdisci­plinar como deve ser).

Enquanto não houver destaquepa­raotrinômi­ociência-orçamento-vontade política, o desfile apoteótico, em marcha fúnebre, receberá nota 10.

A culpa não é da natureza, ela apenas responde à maneira que é afetada

DIEGO PEREIRA É PROCURADOR FEDERAL (AGU). AUTOR DE VIDAS INTERROMPI­DAS PELO MAR DE LAMA (LUMEN JURIS-2ª ED). DOUTORANDO EM DIREITO NA UNB. MESTRE EM DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA. PESQUISAS DESASTRES, BARRAGENS, MUDANÇAS E LITÍGIOS CLIMÁTICOS, RACISMO AMBIENTAL E JUSTIÇA CLIMÁTICA.

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