Muquiranas: brincadeira cede lugar à violência
Integrantes do bloco passam dos limites, atacam mulheres e praticam vandalismo
Quem é mulher e conhece o Carnaval de Salvador sabe: se As Muquiranas estiverem passando no circuito, é melhor esperar. Relatos de assédio, agressões e importunação sexual são recorrentes e não devem ser confundidos com brincadeiras da folia. Com o final da festa deste ano, um vídeo com uma mulher sendo cercada e agredida por integrantes do bloco viralizou nas redes sociais e levantou o debate: até quando a violência será naturalizada em nome da tradição?
Não é preciso ir muito longe para enxergar a contradição. Homens se produzem com perucas, acessórios e maquiagens para parecerem figuras femininas e vão para as ruas agredir mulheres. Apesar de ser um bloco tradicional, fundado em 1965, até quem já desfilou durante anos concorda que as “brincadeiras” ficaram violentas e assustam o público.
Na segunda (20), uma jovem de 25 anos, que pediu para não ser identificada, até tentou não se esbarrar com os integrantes do bloco. Ela passava pelo Campo Grande quando viu a concentração das Muquiranas, e sentiu medo. “A gente sabe a fama que eles têm de agredir, e que é melhor não passar perto”, diz. Como não teve escolha, passou ao lado. “Puxaram meu cabelo e meu braço muito forte. Me assediaram com comentários e jogaram água no meu olho".
A situação ficou ainda pior quando ela esbarrou novamente com o bloco já cheio, na companhia de dois amigos homossexuais, que também foram assediados. A jovem foi beijada à força. “Um homem veio me beijar e eu falei que não queria e que ‘não é não’. Foi então que ele me deu um beijo no rosto à força”.
Apesar da angústia, ela só se deu conta que havia sido vítima de assédio quando assistiu ao vídeo de outra mulher sendo agredida pelo grupo. A naturalização de comportamentos que são enquadrados em crimes sexuais é reflexo do machismo da sociedade, como explica a cientista política e doutora em Estudos Feministas e de Gênero, Rebeca Sobral Freire: “Homens fazem um investimento para se montarem como mulheres e têm comportamentos que as ridicularizam e as agridem”.
Para a cientista, a exposição de corpos que acontece durante a folia vira oportunidade para que homens reproduzam o machismo travestido de piada.
Mas os rastros deixados pelo grupo vão além de assédio e violência. Integrantes do bloco causaram tumulto e promoveram cenas de vandalismo ao subir em portões de prédios, banheiros químicos e pontos de ônibus enquanto desfilavam no circuito Osmar.
CONSEQUÊNCIAS
Longe de ser diversão, a violência praticada por membros das Muquiranas deve ser tratada na Justiça. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) instaurou um procedimento para apurar a agressão vista no vídeo e vai solicitar a instauração de um inquérito pela Polícia Civil.
Do outro lado, o Bloco As Muquiranas divulgou uma carta em que repudia os atos, afirma que vai colaborar com as investigações e reforça que as pistolas d’água não fazem parte da fantasia oficial. Quando os foliões buscam os trajes, recebem um folheto em que o uso do objeto é desencorajado, o que, na prática, não impede que eles sejam levados ao Carnaval.
A agremiação informa ainda que procurou o MP-BA e a Câmara Municipal para que as pistolas sejam banidas nos circuitos. “Nosso objetivo é que tratem as pistolas d'água como um adereço que causa importunação, da mesma forma que proibiram o uso de bebidas em garrafas de vidro", pontua o bloco.
Para a pesquisadora Rebeca Sobral, a proibição do objeto pode ajudar, mas não é nem de longe o suficiente. “Embora exista a legislação, precisamos de uma educação para as relações de gênero na sociedade”, diz. Campanhas prévias de conscientização e punição para os blocos em que a violência ocorra são alguns dos fatores que devem ser considerados, afirma.
COM ORIENTAÇÃO DE MONIQUE LÔBO.
Um homem veio me beijar e eu falei que não queria e que ‘não é não’. Foi então que ele me deu um beijo no rosto à força Mulher, vítima de integrantes do bloco