O torto arado escravocrata
Nesta semana, o Brasil inteiro assistiu, sob forte espanto e indignação, as declarações em que um vereador da cidade gaúcha de Caxias do Sul destila altos níveis de ódio, preconceito e ignorância contra, para usar a expressão própria do político, o "pessoal lá de cima", mais especificamente os baianos. O discurso, por si só, é suficiente para enquadrá-lo nos dispositivos legais e institucionais criados para combater a xenofobia. Feita da tribuna da Câmara de Vereadores do município, em sessão transmitida pelas plataformas digitais da Casa, a fala mostra a desenvoltura com a qual crimes baseados na discriminação, seja ela de qualquer ordem, são cometidos em total destemor.
O estarrecimento se torna ainda maior quando ataques xenofóbicos vêm de autoridades eleitas para defender as leis e salvaguardar o cidadão, independentemente de sua origem, de acordo com o que determina a Constituição. É louvável a atitude da Câmara de Caxias de determinar a abertura de processo de cassação contra o vereador Sandro Fantinel, embora melhor seria se o emparedamento do político não dependesse de um pedido feito em conjunto pelas Defensorias Públicas do Rio Grande do Sul e da Bahia, e sim que partisse dos próprios membros do Poder Legislativo, sem que fosse preciso esperar a imensa repercussão negativa gerada pelo caso. O que daria excelente mensagem de não adesão ao corporativismo que protege determinadas classes.
Ao mesmo tempo, o discurso evidencia o quanto de energia ainda será preciso empregar para extirpar de vez a xenofobia, mal que afeta sociedades no mundo inteiro há priscas eras, com forte impacto sobre judeus, africanos, asiáticos, latinos e indígenas. Se um vereador no exercício do mandato, que toma posse sob juras de proteger a legalidade e de respeitar os princípios constitucionais, o que poderá ser dito de quem não possui as mesmas obrigações e, em tese, pode se preocupar menos com os efeitos decorrentes de declarações dessa natureza?
O tom adotado por Fantinel demonstra também forte desconhecimento sobre o estado, suas nuances sociais, culturais e históricas e a reconhecida disposição de seu povo para o trabalho. Certamente, fruto do arquétipo do "baiano preguiçoso", outra das inúmeras construções simbólicas movidas por puro preconceito, exatamente igual aos rótulos impostos aos demais cidadãos do Nordeste brasileiro, há mais de um século vítimas de discriminação. A indigestão com as ofensas do vereador gaúcho aumenta diante do contexto em que elas foram ditas. Dias antes de desfiar o roseiral xenofóbico, a Polícia Rodoviária Federal havia deflagrado em conjunto como o Ministério Público do Trabalho uma ofensiva para resgatar 240 trabalhadores mantidos em condições análogas à escravidão, quase todos vindos do interior da Bahia para colher uvas em contratos terceirizados com vinícolas renomadas das serras gaúchas.
Em síntese, o discurso é uma defesa subliminar da forma moderna de trabalho escravo, crime de lesa-humanidade. Para piorar, ao citar os argentinos em contraste com os baianos, o político em nenhum momento explica por que são eles e nãos os conterrâneos gaúchos que estavam alojados em uma espécie de senzala contemporânea em Caxias do Sul. Será muito provável que a reposta esteja na recusa dos gaúchos em se submeter ao regime degradante flagrado pela polícia. É como se trabalhadores que se deslocam para lá em busca de alternativas contra a fome e pobreza devessem agradecer pelo suplício que sofreram.
Em síntese, as ofensas do vereador gaúcho contra os baianos vão além da criminosa xenofobia. É uma defesa velada do trabalho escravo no Sul do país